Posted By on Mar 27, 2020

Quarentena Assintomática – II

EMACO


Quarentena Assintomática – II

Autor: Fernando Lopes

A Cura da Cova do Vapor

A minha memória de infância leva-me, nestes dias de quase auto-reclusão, a recordar um episódio que sempre julguei associado à designada tosse convulsa, cujo nome científico é pertússis ou coqueluche. Ca raio de designação, que desconhecia até consultar a Wikipédia. Segundo a descrição, esta é uma doença bacteriana associada a crianças de tenra idade. Ora eu tenho na memória o que a seguir descrevo. Tal só pode significar que então já tinha mais alguns anitos.

Ora assim foi, lá por meados dos anos 50 do século passado. Nascido e criado em Caxias de Oeiras terei sido acometido por algum problema de saúde que preocupou os meus pais. Como era normal na época, uma família da classe média baixíssima, para não dizer pobre, tão comum no Portugal salazarento de então, recorria a conselhos de curiosos que, por vezes, eram também os tratamentos sugeridos pelos João Semana de então. Não esqueçamos que a tuberculose ainda grassava e, apesar da BCG estar a chegar, esta doença ainda requeria o “confinamento”, palavra tão em voga nos últimos tempos.

É num contexto de práticas de terapias alternativas, que recordo, com alguma imaginação infantil, a lembrança da minha primeira “grande” viagem além-Tejo na companhia do meu pai. Ainda eram os tempos em que a talassoterapia complementava, quando não substituía, a medicina oficial. Saímos da casa onde vivíamos, situada no bairro do Forte de Caxias, mesmo ao lado do “sinal”, estrutura acastelada, pintada de branco, integrada no sistema de sinalização da Barra do Tejo e que fora antes o Mirante, sítio altaneiro e privilegiado pela realeza quando veraneavam na Quinta Real de Caxias. 

Como dizia, lá fomos. Primeiro a pé, por caminhos de terra batida, depois pela Marginal, então vazia de trânsito, até à Cruz Quebrada. Aí, por ser uma alternativa mais económica ao comboio, apanhámos o carro elétrico. Ronceiro, a tilintar, passou pelo Dafundo, depois Algés e por fim Belém. Ali para os lados do Palácio da Presidência da República, descemos e procurámos a Estação Fluvial, obra característica do Estado Novo, que aproveitou os aterros anteriores que fizeram desaparecer o Real Cais de Belém Comprados os bilhetes, aguardámos o cacilheiro, que já se avistava, pachorrento e altivo, com a ré coberta por lona e, obviamente, sem janelas. Entrámos e procurámos um lugar de que pudesse desfrutar melhor da maresia iodada. Esse devia ser o remédio tão ansiado para cura da maleita. Desperto o apetite para o farnel, dele recordo as bananas, fruta então exótica e ausente da dieta da maioria dos portugueses.

O azul do céu, o ar puro e limpo, o cachão provocado pelo movimento da hélice e a brisa ligeira que entrava nos pulmões ainda fragilizados do paciente, acompanharam o nosso percurso até à Cova do Vapor. Ali chegados, um passadiço de madeira levou-nos até um enorme istmo de areia que, ao tempo, ainda acompanhava, ao longe, as “ilhas” do Bugio, que diziam ser ainda acessível na maré baixa.

Como a praia não era o destino, apesar de muito em voga, pouco nos devemos ter demorado. No regresso, ainda sentados à ré, ou à proa, talvez para continuar a aproveitar a aragem fresca provocada pela deslocação do cacilheiro. Como num filme, em que o barco e os meus olhos eram a câmara estática, observava as imagens que pareciam mover-se, deixando para trás a povoação de pescadores e, a meio do percurso, o casario e a fortaleza da Trafaria, em cuja praia se vislumbravam, às avessas, as “chatas” de pesca varadas no extenso areal.

Já com o Sol no seu zénite, aportámos a Belém e tomámos o caminho de volta, talvez de comboio ou de carro elétrico, não recordo bem. Certo é que devo ter ficado curado da maleita. Se foi da viagem e da maresia, ou porque tinha que ser, nunca saberei.

Fernando Lopes, no Alto do Lagoal, Caxias, aos 12 de Março de 2020.      

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