Quarentena Assintomática – IV
Autora: Ísis Estevens
A escola primária de Barcarena (Em resultado da quarentena)
7 de Outubro de 1954, um luminoso dia de Outono. Saímos da minha casa em Leceia, para me estrear na escola.
Fomos por um «caminho de cabras», a estrada que ligava as duas povoações foi alcatroada nos idos de 1960, e entrámos numa belíssima moradia rosa com uma caravela de azulejos numa das paredes, um amplo edifício de três pisos, situado na hoje chamada Rua 7 de Junho e precisamente no nº. 7.
Subimos ao primeiro andar e ainda vejo a luz e sinto o cheiro a cera daquela belíssima sala. A grande Professora que foi a senhora D. Alice de Sousa Moreira recebeu-nos, docemente sorrindo. Com o número 240, iniciei a minha escolaridade.
A escola era, diariamente, a minha descoberta. Desde a poesia, à aritmética, à história e à (maldita) gramática. Sempre o amor daquela senhora, o convívio com meninas de todas as classes sociais, vindas da Ribeira Acima, Ribeira Abaixo, Valejas, Queluz de Baixo, Leceia e (naturalmente) Barcarena.
O início dos grandes convívios, do bulling (por ser a melhora aluna, passei para a 2ª. classe com vinte valores) e das grandes paixões, apesar de meninas para um lado (o primeiro andar) e meninos para outro (o rés-do-chão), com recreios também separados, o nosso numa espécie de cave.
Enriquecia diariamente. Da janela da minha sala, via uma velhíssima parede, a que chamávamos Poço do Pires, para aproximadamente 50 anos depois saber, graças ao José Luís Cardoso, que era ruína da aldeia pré-histórica mais antiga da Península Ibérica, o castro de Leceia.
Na escola primária de Barcarena obtive as maiores referencias, más e boas, que guiaram a minha vida pessoal e profissional.
Boas são a lembrança da senhora D. Alice, de um casal de professores, ele o Joaquim Pinho (?) e a mulher, uma regente escolar substituta da minha professora, que se encontrava doente, e já depois de concluída a 4ª. classe, quando da preparação do exame de admissão ao ensino secundário, duas belíssimas mulheres. Uma linda jovem, a Srª. D. Idalinda Tição dos Santos, professora dos meninos, que nos levava para a sua casa em Queluz de Cima, e a Srª. D. Joaquina, professora das meninas, vinda da Amadora e também uma grande profissional.
Retomo a inovadora figura do casal Pinho (?), porquanto a família acabou por (des)respeitar as normas docentes. Lembro que o Professor, cerca de um mês depois do início do ano lectivo de 1956-1957, reconhecendo que o meu irmão então com 7 anos acabados de fazer, sabia de mais, passou-o de imediato, para a segunda classe. Depois, por que, segundo as suas conveniências, atendendo às necessidades da família mas desrespeitando as normas vigentes, misturava ambos os sexos na sua aula do rés- do- chão. Também por defender que as meninas deviam continuar os estudos após o ciclo primário e ainda por não fazer distinções de estatuto social. Cumprindo as regras de então, quando era preciso bater, batia (lembro-me das mãos negras do Miguel) – se quiserem tenho o escrito As mãos negras do Miguel – e tratava todos(as) pelo nome.
Lembro que havia um menino lindíssimo, loiro, de olhos azuis, com uma indumentária que o distinguia dos outros. Uma bata branca de bom tecido e bom corte e por baixo dela, talvez, outras roupagens do mesmo nível. Esse menino era o Cordes, o único, tratado pelo apelido.
Passaram-se anos, muitos, muitos anos, até que soube quem era o Cordes. Quem era o Cordes? Quem era?
O Cordes, era tão só um neto do General Sinel de Cordes, dono da Quinta do Cordes, que hoje conhecemos como Quinta Nossa Senhora da Conceição, importante figura politica com ligações ao Estado Novo e que, se a memória me não falha, tinha então em Barcarena uma rua com o seu nome, a hoje chamada Rua Pelner Duarte, um cidadão barcarenense anti-fascista morto no ano de 1942, em Timor.
Por que fui felicíssima na Escola Primária de Barcarena, comovo-me sem dificuldade quando a vejo. De entre as lembranças, evoco a festa do exame da terceira classe das crianças das localidades apontadas e lembro a riqueza da vida de muitos (as) que por lá passaram. Há porém uma incógnita que gostaria de resolver…!
Que está por trás daquela vivenda lindíssima, que foi a Escola Primária de Barcarena? A quem pertenceu, quem a pensou, por que mantém, pelo menos exteriormente, as características de sempre e por que foi afecta à educação, desrespeitando o modelo arquitectónico das escolas primárias de então? Quem me esclarece?
Isís Estevens
18 Abril, 2020
Sobre a escola nada sei. Mas felicito te pelo artigo.