Quarentena Assintomática – XIV
Autora: Ana T. Freitas
Há dias …
Há dias que a gente se lembra tanto de tanto …
Hoje, o meu irmão mais velho faz anos, lembrei-me agora! Como faço todos os anos, telefonei-lhe e felicitei-o.
Hoje, telefonei à minha mãe, como faço todos os dias. Lembrei-me de lhe pedir para me ensinar a podar as minhas videiras, apenas duas, que se tinham multiplicado em três, mistério da natureza! Já sei que não é a altura para o fazer, que já o devia ter feito, adiantei-me ao ralhete.
Hoje, a minha mãe ralhou comigo, como acontece com frequência por isto ou aquilo! Lembrei-me que a minha mãe continua a ter as suas regras como as únicas verdades, para si e para os outros.
Hoje, a minha mãe ainda me vê como uma catraia, como vê sempre! Que nada sabe da vida, irresponsável! Lembrei-me que alguns conflitos tivemos em situações mais delicadas ao longo da vida.
Hoje, a minha mãe teve razão, como poucas vezes a teve! As videiras já tinham rebentos viçosos, fetos verdinhos, alguns dos quais, doridamente, tive que cortar. Lembrei-me que, por vezes, isso tem que ser.
Hoje, a minha mãe muito me ensinou sobre a arte de podar, como muitas vezes me ensina sobre a sua culinária. Lembrei-me que frequentemente esta situação me acalenta.
Hoje, a minha mãe despediu-se de mim despachadamente, como tantas vezes me despacha. Lembrei-me que lhe interrompi algum programa televisivo do seu interesse ou a reza do terço.
Hoje, passei o resto do Sol desta tarde com o meu Pai. Absorta fiquei a escutar o tique-taque cadenciado da tesoura que, sabedora, carinhosamente debruçada ia cortando os cabelos esguedelhados e espigados das videiras em bardos à espera. Era uma música vinda das entranhas da terra, do fundo dos tempos que, com ternura, rasgava o silêncio, afagava o Douro lá em baixo, ecoava nos montes num eterno retorno e enlevava os céus num apaziguamento poético …
Hoje, um amigo telefonou-me e revelou-me um pouco do tanto que, saudosamente, se tinha lembrado …
Ana T. Freitas – Coruche, 08/ 11 de Abril de 2020
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