Quarentena Assintomática – XXII
Autor: Henrique Seruca
Marmelada
Gostei sempre de marmelada. Falo da que é feita com marmelos, de preferência em casa. No entanto…
Há cinquenta anos, alguém me disse ter visto duas camas de bilros, do século XVII numa aldeia de Trás-os-Montes, na serra de Barroso. Segundo a informação, a dona queria vendê-las. Como eu apreciei sempre as coisas antigas, fiquei desejoso de ver as camas e, com sorte, comprá-las por bom preço.
Como não tinha carro, pedi emprestado o automóvel da minha sogra e, num fim de semana, e lá fui eu a caminho da dita aldeia, acompanhado pela minha mulher. Passei por Mondim de Basto, Ribeira de Pena, eu sei lá quantas terras. A certa altura a estrada deixou de ser alcatroada. O piso era de terra batida. Destemidamente, lá fui por entre a muita poeirada levantada pelo carro, até que me deparei com um enorme pedregulho que aflorava quase no meio do caminho, numa encruzilhada. Impossível passar com o carro, tanto mais que se avistavam, mais à frente, consideráveis covas. Ao longe avistavam-se os telhados da aldeia, como pontinhos no fundo de um vale profundo. Não havia outro remédio, tínhamos de seguir a pé e descer o monte.
Enquanto hesitávamos, pelo outro caminho da encruzilhada chegou até nós um grupo de crianças, umas seis ou sete, em idade escolar. Pés descalços, roupa remendada, sacola de pano a tiracolo. Saudaram-nos alegremente e nós retribuímos.
“O que fazem vocês aqui?”, perguntei eu.
“Vimos da escola e vamos agora para casa” – respondeu um dos petizes.
“Na vossa aldeia não há escola?” – perguntei eu, novamente”.
“Não senhor, a escola fica a seis quilómetros de casa” – retorquiu o miúdo.
Já não quis saber mais nada. Se aquelas crianças eram capazes de percorrer aqueles péssimos caminhos, desabrigados e descalços, à ida e à volta, eu não devia ter dificuldade em chegar à aldeia e regressar. E abalámos todos juntos, encosta abaixo.
Quase uma hora depois chegámos ao povoado. Casas de pedras nuas, com portas e janelas decrépitas, muito modestas. Eu e a minha companheira estávamos derreados. Os miúdos frescos como se tivessem acabado de sair da cama.
Indicaram-nos a morada onde estariam as tais camas. Batemos à porta e veio abrir uma simpática velhinha, de cabelos cor de cinza, vestida de negro.
“Sejam muito bem-vindos, façam o favor de entrar. Se vêm ver as camas, estão lá em cima” – esclareceu a anciã.
Subimos ao primeiro andar por uma fria escada de pedra e entrámos numa sala com uma grande e velha mesa de castanho e algumas cadeiras a pedirem conserto.
“Antes de irem ver as camas, façam o favor de se recomporem da caminhada. Vejo que estão cansados” – comentou a dona da casa.
Enquanto falava a velhinha pôs na mesa um canjirão de vinho caseiro, dois copos, dois pratos e facas, um naco de broa e uma malga de uma mistela compacta com vários tons de castanho.
“Esta marmelada é feita por mim. Desculpem, mas é casa de pobres e não tenho mais nada para vos oferecer. Façam o favor de comer qualquer coisa” – e foi pondo um grande naco da tal pasta em cada prato e encheu os copos com vinho.
“Se me derem licença eu vou arrumar o quarto, para verem as camas. Sirvam-se à vontade” – e abalou para o interior da casa.
A broa era compacta, mas aceitável. O vinho era ácido mas, com esforço, conseguia-se beber. O pior foi a dita marmelada. Era simplesmente intragável, verdadeiramente nauseabunda. Até o estômago se virava do avesso. O problema era grave, pois não se podia ter a indelicadeza de recusar uma oferta tão generosa, dada com o coração por aquela querida velhinha.
Troquei um olhar com a minha mulher, que quase vomitava, e decidi rapidamente. Peguei nos dois nacos de marmelada e estampei-os por baixo do tampo da mesa. A massa era tão pegajosa, que lá ficou presa e escondida, suponho que para sempre.
Entretanto regressava a dona da casa.
“Que bom, vejo que gostaram da marmelada e comeram tudo. Querem mais um bocado?”
Estremeci com verdadeiro terror.
“Muito obrigado, era muito boa (menti eu caridosamente), mas vamos jantar mal regressemos, daqui a pouco. Estamos satisfeitos” – apressei-me a responder.
Fomos ver as camas. Eram dois catres de castanho, mal-amanhados e apenas velhos, sem qualquer interesse. Agradecemos a hospitalidade e abalámos penosamente monte acima, até ao carro, que alcançámos ao cair da noite.
Estávamos tão cansados que já não tive coragem de regressar ao Porto. Nessa noite não jantámos e dormimos no carro, em plena estrada de terra batida, ainda com o horrível gosto da suposta marmelada a provocar pesadelos, e a rogar pragas a quem, maliciosamente, me tinha dado uma informação falsa sobre as camas.
Acordámos manhã cedo, com o chilrear das crianças que seguiam para escola, em alegre brincadeira.
Henrique Seruca
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