Posted By on Abr 21, 2020

Quarentena Assintomática – XXIV

EMACO


Quarentena Assintomática – XXIV

Autor: Henrique Seruca

Albertina, a discreta heroína

Albertina tinha mais de cinquenta anos, na década de sessenta do século passado. Vivia no Porto, na rua Aires de Ornelas, do lado esquerdo quando se desce a rua em direcção à Av. Fernão de Magalhães, perto da casa de meus pais. Era viúva e a sua filha única abandonara duas crianças aos cuidados da avó. Albertina não sabia ler nem escrever, mas era habilidosa de mãos e muito esperta. Para sobreviver e criar os netos, deitou mão à obra.
A casa dela era um corredor, com a porta da rua num extremo, e uma janela, no outro extremo. Perto da janela tinha uma mesinha e três bancos. Sobre a mesa um fogareiro a petróleo, para cozinhar para ela e para os netos, três pratos, três malgas e alguns talheres. Na parede, três ou quatro tachos de vários tamanhos, por cima de uma torneira. A meio do corredor tinha uma cama de ferro, onde dormia com a neta. Por cima desta cama tinha colocado outra cama de ferro, como beliche (feito por ela), onde dormia o neto. Casa de banho não existia. Uma pia de despejos, no chão, junto da janela, servia de retrete. A cara era lavada num alguidar, que também servia para lavar a loiça. O banho semanal era tomado num grande alguidar de folha de Flandres.
Todas as noites, mal acabava de engolir um parco jantar com os netos, metia-os na cama e ia dar uma volta pelas redondezas, à procura de guarda-chuvas partidos, deitados ao lixo. Quando os encontrava, se o pano estivesse bom, levava o guarda chuva inteiro. Se o pano estivesse roto, arrancava-o e levava para casa a haste e as varetas. Depois, pacientemente, desmontava as varetas em bom estado, que guardava num molho. Quando as hastes de madeira eram aproveitáveis, também as guardava. O resto, ia para o lixo.
De manhã cedo, dava um copo de leite e uma bucha de pão a cada neto, levava-os à escola e regressava a casa. Metia o molho de varetas debaixo do braço e levava nas mãos um rolo de arame fininho e um alicate. Pelas ruas ia anunciando: “Arranjo de guarda-chuvas!”. Quando alguém lhe entregava um guarda-chuva para arranjar, ela sentava-se no chão, descalçava as socas e largava o xaile, para ficar mais à vontade. Desmontava as varetas partidas, selecionava outras do mesmo tamanho no molho que trazia, e fazia a reparação. Cobrava “duas coroas”, ou seja, dez tostões, por cada vareta substituída – o suficiente para comprar um chicharro. Era pouco, mas melhor do que nada. Mas o que arrecadava numa semana, não chegava para sustentar os netos. Tinha de encontrar outro complemento financeiro.
Como o corredor, que era a sua casa, tinha um bom pé direito, pensou numa solução para melhorar a sua difícil situação económica. À entrada da porta construiu um estrado, com balaustrada, onde colocou duas camas de ferro estreitas, em linha. Por baixo de cada cama, colocou um penico. O acesso era feito por um rudimentar escadote de madeira. As duas camas do estrado foram alugadas a jovens operários de fracos recursos financeiros, que lhe pagavam alguns escudos por mês. De noite, pelo sim, pelo não, Albertina tirava o escadote, que recolocava de manhã cedo. E por baixo da saída do estrado, a substituir o escadote, tinha o cuidado de colocar um grande molho de varetas, ao alto. Se alguém tentasse descer, seria irremediavelmente espetado por aqueles ferros aguçados.
E assim ia criando os netos. Era uma mulher fora de série.
Diz o povo: “não há mal que sempre dure”, e assim foi com Albertina. Mas isso é outra história…

Henrique Seruca

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.