Posted By on Abr 24, 2020

Quarentena Assintomática – XXVI

EMACO


Quarentena Assintomática – XXVI

Autora: Fátima Camilo

ÀS VEZES SONHO COM O MAR

Era uma vez um pequeno Grão de Areia que vivia numa praia que tinha uma fortaleza, surfistas e outros atletas, muitas pessoas a andar de um lado para o outro e até um farol lá ao longe.

Muitas vezes o Grão de Areia pensava se era realmente bom viver ali. Afinal nunca tinha sossego, nem de noite nem de dia, ora por causa das pessoas que andavam sempre a pisá-lo, ora por causa das ondas que não o deixavam dormir.

Já várias vezes lhe tinha passado pela cabeça mudar-se para outro sítio, mas nunca tinha viajado e por isso não sabia se o outro sítio era longe ou perto, nem quanto tempo demorava a chegar lá.

Na verdade também não tinha relógio. Sabia apenas que havia dia e noite. Que o Sol não estava sempre no mesmo sítio e que a Lua não era sempre igual.

Um dia estava o Sol já perto do forte, quando um surfista começou a despir o fato que tinha usado para escorregar nas ondas. Num repente o Grão de Areia decidiu que aquele era o momento para experimentar sair dali e ir para o tal sítio. Escondeu-se muito bem na bainha da manga do fato e apesar de ter estado prestes a dar uns valentes trambolhões de cada vez que o surfista sacudia a areia do fato, lá conseguir escapar e começou a sua
primeira viagem.

Era tudo novidade!

De repente o surfista parou. O Grão de Areia preparava-se para espreitar a sua nova morada, quando começou a ouvir barulho e a sentir a manga a ficar ensopada. Nem ele sabe como conseguir resistir a tamanha tromba de água.

Quando finalmente espreitou para perceber onde estava, olhou e viu lá ao fundo o mar, o forte e o farol. Percebeu então que estava no duche da praia. Até agora só conhecia este lugar pelo barulho que ouvia da água, sobretudo à noite, quando os forasteiros abriam a torneira e o acordavam.

Depois desta enxurrada fez-se silêncio.

Teria acabado a viagem? O melhor era manter-se na bainha e aguardar…

Num gesto brusco, o fato que entretanto estava escorrido, foi dobrado e guardado num saco.

Não tem graça nenhum estar num sítio que se mexe, que é escuro e não tem ar. Ainda por cima esta mudança de sítio é mais longa. Parece que nunca mais acaba.

Para quem nunca tinha feito uma viagem, andar assim tanto tempo, mal instalado e ansioso, não é fácil e pior ainda para quem sempre viveu ao ar livre e agora nem sabe tão-pouco por onde está a passar…

O Grão de Areia já estava a admitir que não devia ter-se metido nesta aventura, mas agora não havia nada a fazer.

Um estrondo! Um valente safanão! Vozes de pessoas, uns sons que parecem de animais… e ele que só conhecia o som das gaivotas e dos golfinhos…

Finalmente saiu do escuro. Ainda havia Sol, mas por precaução continuava dentro da bainha.

Fez-se silêncio. Era altura de tentar sair do esconderijo. Espreitou e apesar de estar um pouco longe do chão, arriscou saltar.

Olhou em volta. Era tudo novo. O sítio, não era como o Grão de Areia imaginava. Na verdade, ele não tinha formulado nenhuma ideia concreta. Só sabia, de ouvir dizer, que sítio era uma coisa que existia, agora se era
belo ou feio, se tinha cor, se era silencioso ou barulhento… não sabia mesmo nada.

Nesta mistura de entusiasmo e receio, ouviu algo que não conhecia e num ápice ficou literalmente esborrachado por algo quente e peludo.

Susteve a respiração e ficou ali mudo e quedo….Assustado e cansado, adormeceu!

Nunca tinha dormido tão quente. Nem nas noites de Verão, mesmo aquelas em que não corre uma aragem.

Aquilo que apareceu sabe-se lá de onde, saiu finalmente de cima do Grão de Areia.

Silenciosamente abriu os olhos e viu a Lua. Devia continuar a dormir, mas faltava-lhe o embalo das ondas. Foi uma noite e claro!

Quando o Sol nasceu, ensonado e triste, pensou no seu mar de prata. No
farol de pedra branca que brilhava ainda mais nas manhãs límpidas, mas
tinha escolhido sair da praia e tinha de viver com essa realidade.

Todos os dias o fato saía do estendal. E todos os dias o Grão de Areia imaginava a mesma rotina. Vai ao mar, sai do mar, sacode, passa por água, viaja sem luz e sem ar, estende e seca ao luar…

Os dias não tinham nada de novo. Não havia por ali gente, nem atletas, nem a água daquele chuveiro que o acordava de noite.

Estava na hora de tentar regressar à sua praia, de onde nunca devia ter saído. Era preciso encontrar um plano, porque agora no chão, como iria saltar para o seu esconderijo?

Há já algumas luas e sóis que o fato estava ali pendurado sem sair do sítio, o que era muito estranho!

Num final de tarde, lá vinha ele. O surfista vinha ao telefone com alguém… Ouvi-o dizer que estava triste por não poder ir para o mar, que havia um vírus e que era proibido andar na praia, mas que acatava e ficava em casa. Por muito que lhe custasse, ficava e pronto!

Nada naquela conversa fazia sentido para o Grão de Areia, que vivia há uma eternidade na praia e que nunca se constipou nem ficou doente. Muito menos ouviu falar de vírus. Pelo areal e pela beira-mar, as únicas coisas menos boas de que se fala, são as alforrecas, as caravelas portuguesas, o peixe-aranha e o camião que limpa e alisa a areia, mas que invariavelmente o deixava sempre fora do seu lugar.

Era cada vez mais penoso dormir. Não era o único. O surfista também não conseguia e por essa razão vinha muitas vezes dar umas voltas ao sítio. Andava de um lado para o outro inquieto, nervoso, triste. Às vezes via-o chorar e chorava com ele.

Estavam ambos no sítio, impedidos de sair dali, sem poder ver o mar. O Grão de Areia, no pouco tempo que dormia, sonhava…Sonhava que um dia ia conseguir saltar de novo para o esconderijo para fazer a viagem de regresso à sua praia, de onde via a fortaleza, o farol, o Sol e a Lua.

E sonhava tão alto, que até o pólen das flores que viviam no terraço o ouviam dizer:

Juro que nunca mais me vou aborrecer com o barulho da água que me acorda, nem com o frenesim das pessoas, nem com as ondas agitadas. Vou valorizar ainda mais o meu modesto viver, o meu espaço, os meus vizinhos grãos que são tantos e a quem eu pouca importância dei toda a minha vida, vou apreciar mais a brisa, o despertar do dia e o entardecer, o vozeirão do vendedor das bolas, os gritos das crianças…

Às vezes todos sonhamos com o mar.

Fátima Camilo

4 Comments

  1. São as pequenas coisas que fazem grandes acontecimentos. Gostei Fátima.

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  2. Uma fábula muito actual. Gostei imenso, Fátima.
    Parabéns.
    Beijos da Rosário Freitas.

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