Quarentena Assintomática – XXVII
Autor: Henrique Seruca
O HOMEM DA BOINA BASCA
Corria o ano de 1972. Eu já tinha o meu estatuto legalizado em França, como refugiado político, e um passaporte concedido pelas Nações Unidas. Conseguira inscrever-me num Curso de Estudos Especiais em Cirurgia Geral no Hospital Purpan, em Toulouse, e obtivera uma bolsa de estudos da Fundação Calouste Gulbenkian.
Com uma licenciatura portuguesa em Medicina, não tinha a mínima hipótese de poder trabalhar como médico em qualquer parte da França. Com sorte, estava a trabalhar como ajudante de enfermagem, “au noir” (clandestinamente). E eu queria especializar-me em Cirurgia Cárdio-Vascular. Por isso, fiz uma pesquisa dos principais centros médicos com aquela especialização, em todo o mundo. O mais próximo ficava na Suíça, em Genève. Assim, apanhei o comboio para aquele país.
À chegada, fui retido no posto fronteiriço durante quase duas horas. O meu estatuto de refugiado político despertava desconfiança nas autoridades. Para mais, eu estava de fato e gravata, o que era estranho para a minha idade, quatro anos após o Maio de 68 em França. Finalmente, deixaram-me passar e pisar terras helvéticas.
Fui directamente para o Hospital Cantonal de Genève, ao serviço de Cirurgia Cardio-Vascular, para falar com o Professor Charles Hahn, uma das sumidades mundiais naquela especialidade. Espantosamente, fui recebido, com muita cordialidade. Expus a minha situação e as minhas ambições e ele esclareceu-me: só dali a cerca de dez anos ele teria uma vaga para eu, eventualmente, poder entrar como interno. Até lá, já as vagas estavam todas preenchidas. Sugeriu-me ir trabalhar, entretanto, como clínico geral, no Hospital de La Chaux-de-Fonds, que precisava de um médico.
A minha decepção não podia ser maior. A possibilidade de trabalhar como clínico geral em La Chaux-de-Fond durante uns bons 10 anos, até ter uma hipotética entrada numa especialização em cirurgia cardio-vascular, estava fora de questão. Não havia justificação para eu prolongar a minha estadia na Suíça.
Dirigi-me à estação ferroviária e comprei um bilhete em 3.ª classe de regresso a Toulouse, no comboio da noite. Não me podia dar ao luxo de pagar um quarto em Genève e dormir numa cama, nessa noite. Tentaria dormir no comboio.
Comprei uma sanduiche e uma garrafa de água no bar da estação. Foi a minha refeição do dia.
Na hora de entrar no comboio, procurei o meu lugar. As carruagens estavam divididas em compartimentos fechadas por portas, com um banco corrido de cada lado da divisão. Cada banco era destinado a três pessoas. O meu compartimento estava vazio e eu achava-me cheio de sorte. Àquela hora a frequência era muito reduzida e talvez eu me pudesse estender num dos bancos e dormir na horizontal. Foi uma pura ilusão. À hora da partida entrou um homenzinho baixo, de óculos, com uma malinha, boina basca na cabeça e ar ofegante. Perguntou-me se a carruagem tinha mais algum passageiro, ao que eu respondi negativamente. Ele tirou a boina e instalou-se no banco em frente ao meu.
Mal o comboio partiu, preparei-me para me estender no banco e tentar dormir, mas o homem meteu conversa comigo. Perguntou-me que idade eu tinha, de onde era, para onde ia, o que eu fazia. Eu, muito contrariado, lá fui respondendo, desejando que o homem se calasse. Qual quê, ele não parava de me fazer perguntas e eu desesperava. Eu disse que era médico e refugiado político em França, e ele informou-me que era padre e que gostaria muito de ter a minha opinião sobre vários assuntos. E a conversa começou a fluir, espantando o meu sono e cansaço.
O primeiro tema foi o problema do aborto. Na época, eu era absolutamente contrário a qualquer tipo de aborto que não fosse para salvar a vida da grávida, em caso extremo. E ele contrapunha que em determinadas circunstâncias era preciso ponderar muito bem os condicionantes. Queria saber o que eu achava em situações de violação, de estupro, de prostituição, de condições de miséria extrema. E queria que eu apontasse soluções para as situações extremas em que eu me opunha ao aborto. Para minha surpresa, ele tinha pontos de vista de tolerância, que eu não aceitava, e foi justificando, com lógica.
Desse tema passou a outro, e mais outro, e mais outro. Todos diferentes, de grande interesse e importância.
Quando dei por ela, era manhã e o comboio parava em Toulouse, com destino a Paris. A noite passara num instante, numa das conversas mais apaixonantes que eu tive em toda a vida. Eu saía ali e ele seguia para Paris, para o convento de Saint Jacques. Despedimo-nos, pediu a minha direcção e deu-me um cartão de visita seu, que eu guardei no bolso, sem olhar.
Cheguei a casa, desanimado com a minha deslocação a Genève, mas enriquecido por uma magnífica troca de ideias. Beijei a mulher e os filhos, arrumei a pasta e o casaco e lembrei-me do cartão de visita. O nome não me era estranho: Hervé Legrand. As notícias do dia esclareceram-me.
O padre era um dominicano francês de grande relevo, pelos artigos que li nos jornais. Regressava de Genève, onde representara a igreja Católica numa comissão acabada de criar entre a Conferência das Igrejas Europeias (KEK) e o Conselho das Conferências Episcopais Europeias (CCEE), que englobava representantes católicos, protestantes, ortodoxos e anglicanos. Uma importantíssima reunião das várias religiões cristãs.
Dias depois, recebi uma carta do padre Hervé Legrand, com um artigo seu, muito interessante, sobre o problema do aborto. Com grande pena minha, perdi-o na minha mudança para o Canadá.
Como diria Fernando Pessa, do homem de boina basca: “E esta, hein?…”
- Henrique Seruca
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