Quarentena Assintomática – XXIX
Autora: Ana Maria Patacho
SOBREVIVER
A jangada já estava no mar. Em pleno oceano zangado corria certeira nas ondas alteradas. As vagas tão depressa a faziam transportar para o cume dos infernos elevando-a na torre de vigia ao mais alto dos impensáveis como antecipava mais depressa ainda atirá-la para a caverna funda em que o novo movimento de terror feito os aprisionava.
Durante a minha infância houve uma brincadeira recorrente que acontecia principalmente aos sábados de manhã.
Em cima do divã da sala de estar eram derramadas as caixas de brinquedos conjuntos de três irmãos.
E tudo era chamado a participar independente do estado em que se encontrasse: novo, velho ou assim-assim.
Bolas, bonecas, cavalos mancos e respectivos guerreiros com elmos mas sem viseiras salientes confraternizavam com chaveninhas e colheres e garfos já de plástico, lado a lado com tachos e panelas de lata colorida, mas também com automóveis descapotáveis de cores espampanantes, tambores de vários tamanhos, apetecíveis legumes plastificados e até ovos estrelados tão bem imitados que só faltava um pão gostoso para os degustar.
No divã da sala de estar, uma varanda quase quadrada, envidraçada com pequenos rectângulos que deixavam entrar o sol a eito, eu brinquei anos a fio com os meus dois irmãos. O Salvador, mais velho do que eu um ano, e a Marisol, miúda ainda criança ao pé de nós, com caracóis e nariz arrebitado que viera ao mundo para nos infernizar o juízo, ao Salvador e a mim.
A brincadeira organizava-se como se da arca de Noé se tratasse e o dilúvio estivesse prestes a acontecer. Eu simbolizava intuitivamente a acção bíblica do Velho Testamento, que se centrava na necessidade interior que, frente às interrogações que um cataclismo de que nem sequer sabíamos ainda o nome, nos prende, nos reduz a uma insignificância diluída num todo global a que temos de sobreviver.
Os dois irmãos mais velhos compreendiam, ainda que vagamente, porque tinham de voltar recorrentemente a brincar às jangadas. A terceira, Marisol, era muito pequena, e embora não anjo louro de inocência, no miolo de folhos e saiotes encarnados com bolinhas brancas onde emergiam os estranhos caracóis do cabelo cortado curto, essa, era diligente a tomar a brincadeira a sério e tornava-se um bom grumete a cumprir ordens.
Conservar, a bordo da jangada, no sobe e desce descomunal da pandemia desconhecida, era o lema que acolhia os três irmãos ainda que de maneiras diferentes. Talvez por ser rapaz o Salvador preferiria jogar à bola com os amigos rapazes, o que evidentemente tinha de guardar para quando pudesse estar com eles.
A casa era num prédio antigo de uma rua onde passavam já muitos automóveis e até com bastante frequência grandes camionetas verdes de mudanças. E nós não tínhamos quintal. Quanto ao mais próximo só podíamos avistá-lo à distância do terceiro andar onde morávamos, para o rés-do-chão habitado por uma vizinha velhota que vivia sozinha e não falava com ninguém.
E assim era a sala de estar o que nos restava para sobreviver quando os nossos pais ao sábado de manhã ainda estavam a dormir.
No silêncio gastava-se a transumância da turbulência que atirava a jangada como casca de nós que não iria conseguir sobreviver.
O silêncio jogava-se naquele instante enquanto os vagalhões provocados pela tempestade não esperada varriam da jangada os primeiros destroços de cavalos mancos e cabrinhas desvalidas sem que algum dos três irmãos lhes conseguisse valer.
Eram as primeiras vítimas de um desígnio alheio e insondável, frente às interrogações que cresciam variadas nas cabeças dos dois irmãos mais velhos, o Salvador e a Ana Catarina. Era a primeira vaga de uma procela que varria o convés atirando borda fora bonecos e animais, objectos e pessoas indiscriminadamente.
E tudo acabava à hora do almoço para ser recomeçado na próxima brincadeira que pudessem fazer juntos naquele divã, onde a jangada da sobrevivência esperava por eles para novo combate à pandemia.
Ana Catarina e Salvador precisavam de proteger uma força mental que os levava à procura daquela ideia de jangada e à necessidade intuitiva que sentiam ao fazê-lo, somavam-se mais perguntas que ficavam suspensas, sem respostas, mas permanecendo com uma grande inquietude dentro deles.
Interiorizada sem grande consciência, mas com a determinação de quem tem de obedecer a alguma ordem superior desconhecida para enfrentar novos paradigmas.
E fosse o que fosse, mesmo o mais aterrorizador que viesse a acontecer, eles tinham de sobreviver.
No caos e na ordem, cruzadas todas as variáveis quase infinitas. Na angústia como mesmo no pânico, a pandemia iria continuar. Só eles tinham de permanecer na salvaguarda da mente e de uma consciência plena do sentido da vida.
Mas será que vou conseguir levar até ao fim tal propósito? O paradigma tinha mudado. Mas seria que eu vou querer viver assim, sobrevivente de mim mesmo?
Eu sabia que o livre arbítrio me dava o direito e a legitimidade ética para optar. A vida mudara radicalmente depois do 11 de Setembro em 2001. Os valores volatilizaram-se gradualmente. A Natureza transformou-se sem retorno, exigindo com inteira justiça a reparação de tudo quanto a ganância dos homens a violentou.
Para todos o desafio é aterrorizador. Enquanto isso, o instinto mais forte é sobreviver na pandemia.
Mas será que sei e quero viver paredes meias com o medo, neste contexto que vai ser a normalidade daqui para o futuro?
Para os meus amigos,
para todos os que estão
também confinados.
2020, Ana Maria Patacho,
Sassoeiros, 29 de Abril
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