Posted By on Mai 13, 2020

Quarentena Assintomática – XXXIV

EMACO


Quarentena Assintomática – XXXIV

Autora: Ana Maria Patacho

DOIS LADOS DA MESMA MOEDA

Máscaras só as venezianas. Misteriosas. Coloridas. Frivolidades assintomáticas da beleza pela beleza.

Num desafio crescente da loucura feita da inconsciência salpicada pela acqua alta. Com a elegância e o charme desconhecido com que nos cruzam pelos canais ou nos arrastam apetecíveis pelas ruas e vielas de Veneza.
Agora também existe o desconhecido. Mas que nada nos oferece de bom. E só nos pode angustiar ao impor um tipo de vida onde o medo leva à impotência, por mais que sejamos pragmáticos, de uma solução adiada num sine die de que não possuímos a data final.
As máscaras de recorte requintado, mesmo quando retratam as vilanias dos cortesãos venezianos de uma república que se deixou sucumbir nas vaidades de rainha do Adriático, são as únicas que deixei entrar no meu dia-a-dia.
Até agora guarnecem a chaminé da lareira, onde durante os meses mais frios do inverno deixo que o crepitar dos toros de azinho me aqueçam o corpo e a alma.
Tenho duas que trouxe de Veneza no verão de 2009. Uma, é uma máscara feminina, de roxos e palhetados dourados com elegantes plumas multicores oscilantes. A outra, a de algum sedutor louro e de olhos azuis, que andasse perdido num esconde-esconde escaldante através da Laguna.
Turbilhão sem fim de gôndolas que se cruzam no Grand Canal, com Santa Maria Maior a crescer à direita, frente já aos Leões de S. Marcos.
Tudo é misterioso e luxuriante em Veneza. E as máscaras também. Mas a miséria tanto espreita nos abandonados degraus de alguma igreja barroca, como solfeja uma miséria cosmopolita no olhar vítreo que se antevê por detrás da máscara que ostenta uma riqueza afinal só aparente.
Mas não é todo o mundo actual constituído por civilizações ostentatórias de um caminhar pelo falso e ilusório?
Mais ou menos global, o que estávamos a viver levar-nos-ia inevitavelmente ao abismo.
Que a pandemia no seu confinamento forçado, ao menos nos leve a reconhecer que terão de ser feitas mudanças radicais e que o novo paradigma traga maior consciência a cada um. Para podermos avaliar o que o “ficar isolado em casa” por tempo que ainda não sabemos o quanto será para o planeta azul poder refazer-se melhorando a qualidade das suas condições de vida e ser considerado de igual para igual, parceiro das sociedades humanas.

*

E agora tudo está deserto. E a acqua alta, embora não no seu tempo ainda, irá retornar. E poderá crescer alagando as esplanadas que não estarão lá para serem por ela inundadas. Setembro vem longe. Mas chegará. E a dúvida leva-nos à interrogação: “Como vai ser?”
Algures a meio, entre o Carnaval e o final do verão, imagina-se tudo o que não sabemos como vai ser. Porque máscaras só as do confinamento. E mais ou menos seguras consoante o material e a maneira como a confecção for feita.
Mas o medo estará sempre lá. Ao usá-las ele está presente e eu assumo-o. Mas há que habitar a ideia de que é um novo desafio a cada um de nós. A que temos de responder Presente. Para bem de todos. Para bem de nós.
E porque a imaginação pode ajudar-nos a ultrapassar crises, eu volto os olhos para as belas máscaras venezianas que guardo na memória, e como se fosse colocar uma porque tenho de ir à rua, ao supermercado ou à farmácia, digo: “Tudo vai passar”. Só mudou o paradigma!

2020, Ana M. Patacho – Sassoeiros, 8 de Maio

1 Comment

  1. Numa escrita descritiva dos dois lados que podem compor as máscaras, percebe-se uma tentativa de reflexão, sobre o que elas podem esconder. Não as usamos nós no nosso dia a dia, como se nos estivessem, coladas à face? Não será talvez esta pandemia, uma necessidade cósmica, para que as deixemos cair e passemos a uma visão superior de nós próprios e do mundo?
    A leitura de uma sociedade perdida na frivolidade, ou na tentativa de se esconder para melhor manipular, é-nos sugerida pela passagem pelos palhetados e vibrantes cores da sedução. E a mudança que se pretende, pelo uso das que nos podem esconder o medo.
    No entanto, o trabalho realmente a fazer, é dar o passo em frente, na tentativa de um novo sentimento, oposto a esse medo, que se pretende para um renascimento global: o amor!
    E aí sim, as máscaras usadas para nos defendermos e defenderem os outros, terão muito mais brilhos e cores, porque a leitura que faremos uns dos outros, será através da alma.
    Acho que este texto, dos Dois Lados da Mesma Moeda, será um bom começo, para que refletamos sobre isso. Os ingredientes estão lá.

    Post a Reply

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.