Posted By on Mai 17, 2020

Quarentena Assintomática – XXXV

EMACO


Quarentena Assintomática – XXXV

Autora – Ana M. Patacho

CRESCER NUM NOVO PARADIGMA

Hoje tive de sair para ir até ao cimo da rua ao talho do sr. João. Melhor dizendo: a mercearia do sr. João durante a pandemia.

Claro que o que lá fui fazer foi ir buscar o pão alentejano já fatiado fininho. Hoje era mesmo só o pão que eu desejava com fúria canibalesca quando saí de casa.
Mas as luvas, a máscara, os sapatos que tenho guardados à porta, os óculos que agora nunca uso em casa mas que não esqueço pôr quando vou à rua nem que seja só para despejar o lixo nos contentores.
Moro em Cascais mas todo o lixo da minha rua pertence a Oeiras. E desta vez sem culpa do vírus.
O pior foi nos dias em que não se podia passar de um concelho para outro! Em que contentores para o lixo, vidrões, porta óleos e de pilhas, me pareciam sempre exércitos mal-amanhados de furgões sem préstimo para engolirem os detritos das ruas mais próximas.
Hoje não fui ao lixo. Não tinha em casa quase nenhum. Ontem saí para desaguá-lo todo nos contentores cinzentos e sem graça.
Mas as garrafas de vários tamanhos, panóplias de gostos muito particulares, e os boiões dos pikles que vão acabando, levarei noutro dia.
Deixei também as folhas A4, que me submergem já, a aguardar nova oportunidade. Agora o lema é outro: Não fazer tudo no mesmo dia.
Adiar coisas para novo dia sempre diferente no igual que comporta. E até o lixo se adequa a que assim seja. Há que fazer render o tempo do isolamento.
Só a pandemia, que é totalmente injusta nesta indesejada visita alargada ao mundo inteiro, pode verdadeiramente viajar, não precisando sequer dos aviões que estão parados; de comboios e barcos a circularem; ou de fronteiras terrestres abertas em livre circulação como é o espaço Schengen.
Estancando as migrações de seres humanos que, na rota de profecias bíblicas, buscam apenas melhores condições de vida.
Varrendo a eito o planeta Terra num frenesim louco e demencial, o vírus ceifa velhos e novos transversalmente, sem olhar a quem.
Deixando um rasto de dor e impotência a pairar por sobre os escombros à escala global.

*

Penso no conceito que diz que é preciso uma aldeia para criar uma criança.
E olho com apreensão para a reabertura das creches. Como vai ser com as crianças que os pais lá deixarem ficar diariamente?
Uma angústia pedagógica para quem os vai receber e desenvolver um trabalho de que verdadeiramente nada podem saber ainda e, na verdade, quais as implicações.
Crianças numa idade em que estão a dar os primeiros passos para a aprendizagem da vida, num ambiente que lhes é tão hostil, vão começar no dia 18 de Maio, já na próxima segunda-feira, a regressarem às creches. Sem proximidades (q.b.); sem que possam trazer de casa brinquedos para poderem partilhar; sem contactos físicos com os outros meninos ou quaisquer objectos para a troca.
Afinal sem possibilidade de sociabilização, objectivo principal que os leva através dos pais, a estarem ali para benefício de uma aprendizagem de vida a começar agora.
Partilhar e sociabilizar com outras crianças, norteiam a necessidade actual, que substitui a aldeia pela tribo infantil, de uma mesma creche, como ponto fulcral para a educação nesta idade.
E não esqueçamos que eles serão, em todo o mundo, os homens e mulheres que vão constituir as sociedades. E o mundo será o que eles forem.
E com um iniciar tão espartilhado de regras contra-natura e tão pouco desejáveis portanto, como lhes é adverso este novo paradigma, que começa já esta próxima segunda-feira de Maio.
A transformar conceitos de actuação, embora com as angústias reais que estão presentes, mas a que eles não podem fugir e de que futuramente serão as primeiras vítimas.
Ou o novo paradigma deseja precisamente isto? Uma sociedade robotizada, de seres sem emoções, frios e individualistas, controlados ordeiramente como roupa mandada limpar a seco nas lavandarias a troco de lhes tirarem quaisquer resquícios de nódoas indesejáveis, como sejam pensamentos e, muito menos, acções de partilha ou de interajuda.
Seres obedecendo apenas a correias de execução à distância.
Pobres crianças com tamanho peso às costas. Pobre mundo que se nos apresenta com este novo paradigma.

2020, Ana M. Patacho, Sassoeiros, 16 de Maio

1 Comment

  1. Este foi um dos aspetos que me martirizou durante algum tempo e que me levava a querer gritar…. PAREM…PENSEM…. NÃO VÊM QUE SÃO BEBÉS?…
    As crianças só desenvolvem harmoniosamente se interagirem com o meio que as rodeia…com os afetos, com as gargalhadas e risadas boas e más, com tudo o que sempre soubemos que os nossos bebés.., as nossas crianças precisariam para virem a ser adultos, cidadãos bem formados…..
    Assim, agradeci por, neste momento, não ser educadora de infância e por não ter crianças com menos de 3 anos.

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