Quarentena Assintomática – XXXVI
Autora: Ana M. Patacho
DORMINDO COM O INIMIGO

Não sei se se lembram do filme “Dormindo com o Inimigo” *, com Julia Roberts em mais uma personagem extraordinária que nos leva ao mundo interior de uma mulher cujo marido exerce uma violência tão profunda sobre ela, que o terror é sentido pelo espectador como se a sua própria pele fosse a destinatária.
Julia Roberts é a mulher que consegue escapar do seu obsessivo marido que sobre ela exerce uma abusiva perseguição, louca e descontrolada, de prepotência conjugal, por entre as quatro paredes de uma casa magnífica, toda de vidro, transformada em recinto de tortura inimaginável.
Passa-se em Cabo Cod, mas poderia ser em qualquer parte. E em qualquer contexto.
Aqui a casa era de vidro situada num local privilegiado de uma paisagem à beira do mar. E a violência foi-se desenvolvendo com grande intensidade.
Aquela violência demolidora que está nos genes de alguns humanos e que só espera a ocasião propícia para se expandir e eclodir com estragos que podem, com frequência, levar à morte.
Viver em pandemia na distanciação, mais do que um clima imaginado por Ray Bradbury, é uma dura realidade para todos nós.
E durante a fase de confinamento obrigatório no estado de emergência, que impunha a todos ficarem em casa, quantas vezes em agregados familiares que já não traduziam boas convivências, tornou-se fatalmente num contexto propício a um desenvolvimento conflituoso, de uma violência demencial, que terá de ser olhada com novos olhos pela comunidade em geral.
O estado tem de estar alerta através dos mecanismos que foi desenvolvendo com mais ou menos acuidade, mas cumpre-nos a nós cidadãos estar atentos porque agora, mais do que nunca, mais próximos do que se passa quase paredes meias connosco. E de que sempre quisemos, num respeito exacerbado pelas liberdades alheias, nunca interferir.
Mãos limpas sim. Mas enquanto pudermos. Sem nos alhearmos de problemas muito graves que podem levar à morte lavando nós as mãos como Pilatos.
Agora as notícias são outras. Ou a falta delas no campo da violência doméstica.
Porque há menos queixas de vítimas que ao estarem confinadas em casa, com o agressor, se sentem com menos possibilidades de se queixarem de todas essas agressões.
E não será que o agressor também se sente mais à vontade e até mesmo impune porque reconhece o contexto que está a viver obrigatoriamente, podendo sentir-se imune a ponto de lhe tirar os limites ao que pode fazer?
Há que estarmos atentos, agora e sob qualquer contexto, à violência doméstica, seja sobre quem for, mulheres, crianças, idosos, mas igualmente homens.
Todos sem excepção poderão ser vítimas. Fenómeno de poder, levado a extremos de violência que, tenha os contornos que tiver, não poderá ser tolerado pelas sociedades em que se produzem transversalmente. E que a sensibilização a esta verdadeira desordem social seja sim, global.
Um filme americano de 1991 serviu-me para a memória me trazer confinada a esta quarentena assintomática de 2020.
“Dormindo com o Inimigo” é um ícone de uma situação concreta entre um casal heterossexual. Mas configurou-me toda a imensidão de silêncios sobre situações de violência doméstica que, diariamente, a comunicação social traz para os canais de televisão e de rádio e até para a imprensa escrita.
Onde casos chocantes todos, embora uns ainda mais de que outros, como sejam por exemplo os de pais que podem causar a morte a filhos menores, infligindo-lhes torturas físicas através de maus-tratos inqualificáveis de que só os animais humanos são capazes.
Mas também esses se dão dormindo com o inimigo. A coabitar as quatro paredes de uma vulgar casa qualquer, e ainda que não de vidro, como a Julia Roberts no filme americano.
É que o que deveria ser, de modo natural, a salvaguarda da família que, tutelar na protecção dos seus mais frágeis e desprotegidos elementos, se transforma facilmente, e cada vez mais, em antros encurralados das mais diversas formas de violência doméstica.
Que não escolhe géneros e em que o silêncio mata.
2020, Ana M. Patacho,
Sassoeiros, 19 de Maio
*- “Dormindo com o Inimigo“ é um filme americano de 1991, de suspense psicológico, dirigido por Joseph Ruben. E baseado num romance de Nancy Price.
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