Quarentena Assintomática – XXXVII
Autora: Ana M. Patacho

NO ARAME DAS PALAVRAS
Encontro-me num estranho dia-a-dia onde a normalidade passou a ser esta. As máscaras obrigatórias no distanciamento físico. O medo que nos pesa em tudo que fazemos. No sonhar mais a dormir. Num acordar sobressaltado pelo sonho que esta pandemia me trouxe, cruzada pela minha outra pandemia própria, a da visão, entrechocando-se.
Uma eu já tinha. Era só minha. Específica. Caótica. Tenebrosa. Agora encontram-se as duas. Sem os campos definidos. Mas acumulando-se sobrepostas, elas miscigenizam-se e aborrecem-me. Tornam-me a vida mais difícil.
E como controlar pois as duas quando se sobrepõem deste modo? Tanto podendo ser às sete da manhã como às duas da noite, quando ainda não me deitei.
Esta pandemia, a que dou o nome de Gerir duas pandemias, é o que me leva à necessidade da escrita de pequenos textos.
Que vou publicando na NET graças à ESPAÇO-MEMÒRIA, gente com quem me relaciono há quinze anos, tantos os que vivo aqui na minha Sassoeiros a que sempre chamei Oeiras.
Por tudo isto a minha confusão e estranheza quando oiço amigos dizerem que agora o confinamento que os proíbe de saírem de casa lhes tolheu a vontade de escrever. Sentem-se presos. Interditados para o fazerem.
E eu, a quem a mente ensinou que não é o estar preso que me pode impedir de ter liberdade interior, continuo pois a senti-la percorrer-me. Ser companheira de mim própria.
E navego com ela por entre o cruzamento das minhas duas pandemias, como se num corcel continuasse a voar tão livremente como antes.
Liberdade é possível tê-la seja pois em que contexto for. É um exercício mental que podemos exercer através da Língua, nossa, a portuguesa, que no dia 5 de Maio de 2020, em pleno estado de emergência, foi celebrado pela primeira vez o seu Dia.
Em confinamento no auge das notícias, eu senti o arame finíssimo em cima do qual nos tentávamos equilibrar. E do pouco que restava, a Língua era a vara que ajudava o nosso funambulismo.
Se nas informações éramos bombardeados com TESTAR. TESTAR. TESTAR, eu respondia: Escrever. Escrever. Escrever.
Era a minha capacidade de resposta ao vírus. Era a sobrevivência da minha mente. Era a única forma que eu tinha de me sentir em liberdade e independente de um contexto tão asfixiante.
Mas se a mente é importante, o lado emocional não o é menos. E o saber que estes textos, em que havia tantas referências culturais, podiam ser partilhadas ainda que à distância agora, levava a que reflexos do meu coração podiam ser partilhados com quem os lessem, trazendo-me a mim de volta pedaços amigos das vozes que me acompanham, nem que seja só virtualmente.
A cultura é pois boa, tanto para o coração como para a cabeça/mente. E a Língua portuguesa existe como Língua de Cultura no Mundo, seja na envelhecida Europa como na Ásia, África ou Oceania, reconhecida pela UNESCO desde o ano de 2020, e celebrada a 5 de Maio desse ano pela primeira vez no seu Dia Mundial.
Que os futuros dias 5 de Maio possam ser celebrados sem confinamento. No pleno uso das liberdades.
“Ser português não é uma nacionalidade mas um ofício”.
Corroborando palavras de Batista Bastos, numa entrevista à RTP/MEMÒRIA, façamos da Língua uma arma. Que ao usá-la, o sentirmo-nos no arame das palavras, nos leve ao sonho e ao delírio, como se não estivéssemos confinados e a Liberdade pudesse ser total.
2020, Ana M. Patacho, Sassoeiros, 26 de Maio
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