Quarentena Assintomática – XXXVIII
Autor: Carlos Peres Feio
Poema politicamente incorrecto
– de carlos peres feio
ai que saudades que tenho
do tempo em que até parecia que tudo corria bem
em que quem tinha dinheiro
comprava um potente automóvel para o seu filho crescido
e este ia acidentar-se em Monte Carlo
ai que saudades tremendas de ter o desejo
que a televisão fosse a cores
– quando ela se coloriu foi para mostrar
mais camisolas de futebolistas
e o grande Nemésio ficou para sempre a preto e branco
as saudades não me largam
as que me recordam que havia a esperança
de um dia, à força, sim só podia ser à força
as coisas iam mudar e os mandões cinzentos
daquela loja em São Bento
seriam substituídos por gente mais séria
as saudades podem ser o motor para dias melhores
lembro-me de querer votar e não me deixarem
mas também tenho saudades de em tempos mais recentes
pensar que ir à urna deixar um papel
resolvia problemas
as saudades que eu tenho de ser esperançoso
de tocar piano nos serões familiares
de ter filhos pequenos – de ter netas pequenas
e de eu próprio ser pequeno
dos aeroportos serem caseiros
de visitar museus sem ir para uma enorme fila
de cometer um erro grave
e poder emendá-lo
e as coisas boas que aconteceram?
dessas não tenho saudades –
tenho-as aqui e agora, e moro com elas
eu avisei
– é um poema politicamente incorrecto –
– carcavelos – 2020 05 31
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