Posted By on Mar 15, 2021

Miguel Magalhães Ramalho
(1937-2021), guardião de patrimónios

EMACO


Miguel Magalhães Ramalho
(1937-2021), guardião de patrimónios

Para conhecimento dos nossos associados, damos a conhecer o artigo do jornal Público (https://www.publico.pt/2021/03/12/ciencia/noticia/miguel-magalhaes-ramalho-19372021-guardiao-patrimonios-1954062), de 12 de Março de 2021, com texto da autoria de Teresa Firmino sobre o eminente geólogo Miguel Magalhães Ramalho:

GEÓLOGO
Miguel Magalhães Ramalho
(1937-2021), guardião de patrimónios

O geólogo tinha grande amor ao Museu Geológico de Lisboa, de que foi director desde 2007, mantendo-se a coordená-lo depois da aposentação. Neste museu do século XIX guardam-se colecções preciosas de geologia, paleontologia e arqueologia pré-histórica. O seu futuro preocupa agora os mais próximos de Miguel Magalhães Ramalho.
Teresa Firmino

O geólogo Miguel Magalhães Ramalho, de MARIA DE MAGALHÃES RAMALHO

O director do Museu Geológico de Lisboa, Miguel Magalhães Ramalho, morreu na segunda-feira, aos 83 anos, em Lisboa. O velório realizou-se na quarta-feira, em Cascais, e a cremação foi esta quinta-feira só para a família. O geólogo empenhou-se na divulgação e valorização do património geológico, científico, cultural e ambiental.
Entre inúmeros exemplos de defesa do património geológico (e para lá dele), pode recordar-se que Miguel Magalhães Ramalho não descansou enquanto não regressaram a Portugal, o país de origem, fósseis mamíferos primitivos (https://www.publico.pt/2007/05/31/ciencia/noticia/fosseis-de-mamiferos-primitivos-regressaram-para-os-portugueses-1295510) de relevância mundial.
Estes fósseis de 150 milhões de anos, do Jurássico Superior, tinham sido recolhidos na mina da Guimarota (https://www.publico.pt/2007/05/31/jornal/a-historia–de-uma-mina-de-carvao-216929), perto de Leiria. Os primeiros foram levados para a Alemanha na década de 1960, pela equipa do paleontólogo que os descobriu. No início de 2007, chegava finalmente a Portugal a primeira leva e, meses depois, vinham alguns dos fósseis de mamíferos mais importantes (e frágeis) da Guimarota, trazidos pessoalmente por um paleontólogo alemão, Thomas Martin.
O regresso dos mamíferos da Guimarota (https://www.publico.pt/2007/05/31/ciencia/noticia/fosseis-de-mamiferos-primitivosregressaram-para-os-portugueses-1295510), noticiávamos então, não tinha surgido do nada. “Há dez anos, o geólogo Miguel Ramalho, director do Museu Geológico, começou os contactos para que os fósseis voltassem para Portugal. Como aliás tinha sido acordado, tanto que nos anos 60 ou 70 ainda regressaram alguns”, lê-se nessa notícia do PÚBLICO de 2007, ano em que Magalhães Ramalho passou a dirigir o Museu Geológico de Lisboa.

Um dos fósseis de mamíferos devolvidos a Portugal JOÃO CORTESÃO/NFACTOS

“Nos últimos três anos, retomei os contactos. Thomas Martin respondeu-me a dizer que não havia problema”, contava-nos então Miguel Ramalho. “Compreendo que, ao fim de tanto tempo, o meu colega Miguel Ramalho e o museu queiram ter os fósseis aqui, no país de origem”, dizia, por sua vez, o paleontólogo alemão.
É este “empenhado esforço” de Miguel Magalhães Ramalho na defesa do museu, instalado no segundo piso do antigo Convento de Jesus, onde se encontra também a Academia de Ciências de Lisboa, que é destacado pela irmã do geólogo, Margarida Ramalho, coordenadora científica do Museu de Vilar Formoso. Citada pela agência Lusa, acrescenta que espera que o museu “continue a sua missão com as características que tem, que é um laboratório de estudo”, uma vez que as suas colecções despertam interesse aos investigadores estrangeiros (https://www.publico.pt/2007/10/17/jornal/um-novo-dinossauro-descoberto-no-museu-234008). “O amor que ele dedicou ao museu! Dedicou-lhe a vida quase toda”, comenta ao PÚBLICO Margarida Ramalho.
Em Janeiro de 2016, Miguel Magalhães Ramalho lamentava, em entrevista à Lusa, que a instituição que dirigia se encontrasse “esquecida dos poderes públicos, que até a quiseram fazer desaparecer”: “Houve várias tentativas de fazer desaparecer o museu por parte de entidades públicas responsáveis pela educação e a cultura.”

O Museu Geológico de Lisboa ENRIC VIVES-RUBIO/ARQUIVO

O geólogo, que trabalhava “pro-bono”, salientava a importância da geologia em áreas como o ordenamento do território, o reconhecimento de recursos minerais, nomeadamente de fontes de água, e referia o debate actual sobre o aquecimento global, tendo considerado “essencial” conhecer “a terra que pisamos”.
O Museu Geológico de Lisboa detém colecções únicas no país (https://www.publico.pt/2007/10/17/jornal/um-novo-dinossaurodescoberto-no-museu-234008), tendo expostas mais de 4000 peças respeitantes às colecções de (http://www.publico.pt/2007/05/31/ciencia/noticia/fosseis-de-mamiferos-primitivos-regressaram-para-os-portugueses-1295510) paleontologia (https://www.publico.pt/2007/05/31/ciencia/noticia/fosseis-de-mamiferos-primitivos-regressaram-para-osportugueses-1295510), geologia e arqueologia pré-histórica. Tem a segunda mais importante colecção na área da pré-história, logo a seguir ao Museu Nacional de Arqueologia. Outra das suas colecções valiosas é a de fósseis de dinossauros. Fundado em 1859, é um dos museus mais antigos da Europa.
Entre as 4000 peças expostas, há 27 que se encontram assinaladas como “maravilhas” (https://www.publico.pt/2009/10/27/jornal/das-trilobites-as-chamines-submarinas-nomuseu-geologico-18095629), que são as mais emblemáticas da instituição. Porquê 27? “Fui seleccionado peças e 27 é um número tão bom como outro qualquer”, respondia ao PÚBLICO Miguel Magalhães Ramalho quando, em 2009, era inaugurada uma exposição com 27 maravilhas das colecções do Museu
Geológico de Lisboa, onde se incluía o exemplar de um dinossauro ou o esqueleto de um cão doméstico
(https://www.publico.pt/2011/08/08/jornal/o-cao-mais-velho-de-portugal-foi-descoberto-numa-gaveta-de-museu-22546557) (de Muge, Salvaterra de Magos) já datado com cerca de oito mil anos. “O objectivo é que as pessoas vejam com mais atenção o que está no museu”, dizia.
“‘Um museu que ensina’ é o nosso lema”, como resumia há cinco anos à Lusa. O museu foi fundado por um dos pioneiros da geologia portuguesa (https://www.lneg.pt/MuseuGeologico/), Carlos Ribeiro (1813-1882), no âmbito da criação da Comissão Geológica do Reino. “Somos um museu pouco conhecido, que recebe mais elogios dos visitantes estrangeiros do que visitas de nacionais”, lamentava ainda.
A irmã do geólogo manifesta preocupação pelo futuro do museu, que em 2010 foi classificado como “imóvel de interesse público”, dado o valor científico das suas colecções e da museografia oitocentista. “O que vai acontecer ao museu? Essa é uma grande dúvida, a grande preocupação. Como historiadora, fui testemunhando a ignorância dos poderes públicos para a preciosidade do Museu Geológico”, diz Margarida Ramalho. “Vários investigadores estrangeiros dizem que é um museu dos museus e ficam deslumbrados.”
Da geologia à micropaleontologia
Nascido a 23 de Maio de 1937 em Lisboa, Miguel Magalhães Ramalho licenciou-se em Ciências Geológicas, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa em 1959, onde foi professor assistente entre 1959 e 1961.
Em 1965, depois de cumprido o serviço militar, fez vários estágios com investigadores na área da paleontologia em laboratórios franceses, graças a bolsas de estudos do Instituto de Alta Cultura e da Fundação Calouste Gulbenkian. No Laboratório de
Micropaleontologia da Universidade Pierre e Marie-Curie (em Paris) trabalhou sob orientação de Jean Cuvillier, obtendo o diploma de estudos avançados em micropaleontologia em 1966, segundo um texto de Ana Cristina Azerêdo, do Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), que se licenciou, doutorou e trabalhou vários anos com Magalhães Ramalho. E, na Sociedade Nacional de Petróleo da Aquitânia – Centro de Investigação em Pau, dedicou-se a estudos de microfácies sob a orientação de R. Deloffre.
“As suas estadas em França permitiram-lhe trabalhar com diversos investigadores de vários laboratórios de micropaleontologia”, lê-se ainda no texto de Ana Cristina Azerêdo, divulgado no site da FCUL. “A maior parte da sua tese de doutoramento, sob o título ‘Estudo micropaleontológico e estratigráfico do Jurássico Superior e Cretácico Inferior dos arredores de Lisboa’, foi preparada no Laboratório de Micropaleontologia da Universidade Pierre e Marie-Curie. Apresentou-a em 1972, na Universidade de Lisboa, a um júri onde constava a sua orientadora daquele laboratório.”
Em 1978, apresentou provas de agregação em Ciências Geológicas na FCUL, onde foi professor catedrático convidado a tempo parcial.
O seu trabalho como geólogo decorreu principalmente nos Serviços Geológicos de Portugal (SGP), da ex-direcção-geral de Minas e Serviços Geológicos, e nas instituições que se lhes seguiram, como o Instituto Geológico e Mineiro (IGM). De 1978 a 1992, foi director do Serviço de Cartografia Geológica. De 1993-2003, foi vice-presidente do IGM, responsável pela Área Geológica, ficando com o pelouro dos Núcleos da Biblioteca e Publicações, da Litoteca e do Museu Geológico de Lisboa. Entre 2003 e 2007, foi o coordenador do Departamento de Geologia, Litoteca e Museu Geológico. A partir de 2007 dedicou-se então essencialmente ao Museu Geológico, que passou a dirigir, refere Ana Cristina Azerêdo.

O geólogo em Julho de 2001 MIGUEL MADEIRA/ARQUIVO

“Ao longo desses anos, promoveu e contribuiu para a realização de programas e projectos de investigação e de cartografia geológica sistemática do país, o relançamento de diversas actividades, o reapetrechamento dos laboratórios e melhoria das condições de trabalho, o incremento da colaboração com diversas universidades portuguesas e outras instituições nacionais e estrangeiras”, salienta Ana Cristina Azerêdo.
Quanto à sua actividade de investigação científica propriamente dita, consistiu na maior parte em estudos micropaleontológicos – “sobretudo de foraminíferos bentónicos e de algas calcárias e análise de microfácies, em formações carbonatadas e mistas do Jurássico Superior e do Cretácico Inferior de Portugal”, explica a investigadora da FCUL.
Esta linha de investigação – cujos dados foram utilizados por empresas de pesquisa petrolífera a actuar no país – serviu também de apoio à cartografia e à definição estratigráfica das unidades representadas nas cartas geológicas relativas ao Mesozóico do Algarve e da Bacia Lusitânica, destaca ainda Ana Cristina Azerêdo. “Estudou muitas sondagens relacionadas com a actividade das companhias petrolíferas. Os seus estudos e interesses científicos abrangeram também a paleoecologia e a paleontologia, em geral, e a interpretação de paleoambientes sedimentares marinhos.”
É autor de mais de uma centena de publicações, de que damos apenas como exemplo a definição de três géneros e 13 espécies novos para a ciência.
Um ambientalista
“O litoral do país viria a ser uma das suas mais constantes batalhas enquanto defensor do património geológico e do ordenamento do território”, realça também Ana Cristina Azerêdo. Dedicou muito do seu tempo a causas ambientalistas e de cidadania. Por exemplo, de 1985 a 1987, foi sócio-fundador e presidente da Associação Portuguesa de Geólogos. De 1988 a 1992, foi presidente da Liga para a Protecção da Natureza (LPN). Fez parte da direcção do grupo português da ProGeo – Associação Europeia para a Conservação do Património Geológico.
Em prol da valorização e salvaguarda do património geológico, promoveu trabalhos de natureza científica no IGM, como cartas geológicas das áreas protegidas e bases de dados de geossítios, em colaboração com as universidades. Participou em acções de divulgação (palestras e excursões) e grupos de trabalho ou escreveu artigos de opinião nos media
(https://www.publico.pt/2019/09/06/ciencia/opiniao/terra-homem-1885574). Promoveu visitas de trabalho a Portugal de especialistas internacionais da área de estratigrafia e paleontologia. Parte das colecções do Museu Geológico
(https://www.publico.pt/2012/10/20/jornal/crocodilos-freiras-poetas-e-indios–a-historia-de-lisboa-ao-descer-uma-rua-25410344) voltou a ser estudada e actualizada graças a esses contactos internacionais (http://Os mamíferos atiraram-se ao ar há 160 milhões de anos e… começaram a planar).
“No Museu Geológico, presente desde sempre no seu coração e na sua atenção, de forma mais acentuada após a aposentação, promoveu e contribuiu para trabalhos de inventariação das colecções científicas”, frisa Ana Cristina Azerêdo. Além disso, procurou melhorar as condições expositivas das peças, divulgar o acervo do museu e as suas potencialidades didácticas e científicas, bem como e aprofundar as relações com unidades de investigação portuguesas e estrangeiras.

Museu Geológico de Lisboa ENRIC VIVES-RUBIO

Em relação ao ambiente, a investigadora menciona que muitas foram as contribuições de Miguel Magalhães Ramalho, tendo sido, por exemplo, um dos autores do Livro Branco do Ambiente (1991). Pelo empenho na defesa do ambiente, a Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente (CPADA) atribuiu-lhe, em 2011, o Prémio Carreira da CPADA.
Marcelo Rebelo de Sousa lamentou a morte do geólogo em nota divulgada no site da Presidência da República, comiserando-o uma “figura maior da geologia” portuguesa. “Ao longo da sua vida, Miguel Ramalho destacou-se também como empenhado defensor das questões da conservação da natureza, nomeadamente relativas ao património geológico de Portugal”, referiu. Também Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, expressou pesar pela morte do geólogo, “a quem tanto devemos na divulgação e valorização do património geológico do país”, evocando igualmente “o seu importante papel no movimento conservacionista e ambientalista, de que era uma das figuras mais admiradas”.
Várias têm sido as mensagens de evocação a Miguel Magalhães Ramalho deixadas num grupo de discussão online de arqueologia. “Além do grande geólogo, estratígrafo e paleontólogo que foi, pioneiro dos estudos de micropaleontologia em Portugal, tive oportunidade de testemunhar o amor sereno, firme e incondicional que ele dedicava às causas em que acreditava, à frente das quais estava o seu querido Museu Geológico. Os anos passaram, os governantes mudaram, os interesses também, mas Miguel Ramalho, não”, escreve João Luís Cardoso, vice-reitor da Universidade Aberta. O museu era “naquele porto seguro, onde todos eram bem-vindos, recebidos sempre com um sorriso cordial, contente dos que ali acorriam para estudar as colecções portentosas que ele foi sempre o primeiro a defender, com serenidade, mas sempre animado de uma determinação ditada pela razão, para poder colocá-las à disposição de todos”, acrescenta o arqueólogo.
Já o arqueólogo Luís Raposo (https://www.publico.pt/2021/01/05/culturaipsilon/opiniao/museus-mundo-ai-vem-1944501), presidente para a Europa do Conselho Internacional de Museus (ICOM), evoca o homem lutador. “Um homem de um só parecer, um só rosto, uma só fé, de antes quebrar que torcer. Admirava-o imenso e várias vezes recebi dele o suplemento de alma que as nossas lutas requerem.” Lembra que “um homem de corpo inteiro partiu”: “Saibamos honrá-lo, continuando a luta por um mundo melhor, respeitador das pequenas e das grandes coisas, da natureza e da memória.”
Para Ana Cristina Azerêdo, a morte de Miguel Magalhães Ramalho “deixa um imenso vazio não só na sua área de investigação, mas, sobretudo, no Museu Geológico”. O seu último projecto passou pela reconstituição de um dinossauro inteiro em posição de vida, o estegossauro Miragaia longicollum (https://www.publico.pt/2018/02/09/ciencia/noticia/bemvindos-ao-dino-parque-aquiestao-os-dinossauros-que-ja-viveram-em-portugal-1802502), cujo fóssil integra as colecções do museu, para uma exposição que a pandemia da covid-19 veio adiar.

VEJA TAMBÉM: MUSEU GEOLÓGICO DE PORTUGAL

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