Posted By on Fev 16, 2023

Textos por Oeiras
– A Estrada Nacional 6 e o Ramo da Cartuxa

EMACO


Textos por Oeiras
– A Estrada Nacional 6 e o Ramo da Cartuxa

Autor: Fernando Lopes

Perto da actual Praça Alves Redol, em Caxias, está um monolito (1) de cerca de 1 metro de altura, com  uma estrutura quadrangular e topo arredondado, quase escondido numa sebe que bordeja a Ribeira de Barcarena. Observado de perto, percebem-se nele vestígios de incisões que apontam para uma escrita muito erodida pela passagem do tempo.

Estamos em presença de um marco de estrada, situado numa via que já sofrera muitas alterações, particularmente ocorridas depois das grandes cheias que assolaram Caxias em meados do século passado (2). De estrutura simples e estranha na forma, fora moldado pela passagem do tempo e das intempéries. Apontava para uma época algo recuada. Que faria ali? A quase imperceptível leitura não apontava para o topónimo do local. Teria sido ali esquecido ou simplesmente abandonado?

Das origens

Os actuais sistemas de sinalização das estradas não deixam de ser herdeiros de outros muito antigos. Recordamos de imediato os marcos miliários, observáveis na berma de alguns caminhos ou resguardados em museus (3). Sabemos que se distanciavam entre si de 1000 passos ou cerca de 1480 metros e que acompanharam a expansão da rede de estradas e calçadas dos espaços sucessivamente romanizados a partir do século IV aC.

Após o declínio do império romano e o fim do período medieval, as vias de comunicação terrestres por onde transitaram durante séculos populações, exércitos e comerciantes,  acabaram por perder a sua função inicial de ligar a extensa rede viária que o vulgo dizia chegar e partir de Roma. Em parte do território lusitano e galaico, onde é hoje Portugal, subsistiram pequenos itinerários, abandonados ou de reduzido uso.

Do Período Romano à Idade  Moderna

A presença romana no território oeirense está suficientemente atestada pelos diversos achados arqueológicos que apontam para uma distribuição significativa de casais e vilae. Parte do amplo “ager olissiponense”, Oeiras vai contribuir para o abastecimento da grande urbe em diversos produtos, dentro os quais destacaríamos o pescado e, naturalmente, os cereais, o vinho e o azeite, enquanto principais produtos de tradição mediterrânea. As vias percorreriam os limites das propriedades, ligando-as ou seguindo em direção ao rio. Estes “caminhos vicinais” sofreram transformações posteriores  que hoje dificultam a sua confirmação. O seu carácter rude , quase sempre em terra batida, aproveitava os afloramentos rochosos e, apenas nas proximidades das vilae, assumia a formação de calçadas com cerca de 2,5 metros de largura (GUILHERME CARDOSO & JOÃO LUÍS CARDOSO, a Ocupação Agrária do Concelho de Oeiras na Epoca Romana, VI Encontros de História Local do Concelho de Oeiras- História, Espaço e Património Rural, CMO, 2005).

Razões históricas diversas, como a insegurança que se seguiu à pax romana ou mesmo a procura de maior comodidade, podem explicar o progressivo abandono das antigas vias em benefício dos percursos fluviais e marítimos. Em Portugal, na segunda metade do século XVIII, as poucas estradas existentes, de iniciativa régia, não passavam de caminhos de má qualidade que requeriam constante manutenção.

O renascimento da rede viária e o advento da toponímia republicana

Ultrapassados os períodos anteriores, a partir de meados do século XIX é estruturada uma rede viária nacional devidamente classificada em Estradas Reais (de 1ª ordem), Estradas Distritais (de 2ª ordem) e Estradas Municipais. Esta rede vai ligar os centros mais importantes do País, aproveitando alguns dos traçados pré-existentes. É também retomado o conceito romano de marco miliário, agora como marco Quilométrico, a que se associa um maior cuidado com a sinalização. Ora, é aqui que entronca o nosso marco que apresenta numa das faces a inscrição EN 64 e na outra a palavra CARTUXA.

Depois da implantação da República as Estradas Reais passaram a designar-se Estradas Nacionais. Daí a referência “EN” observada no marco em análise. Já um dos algarismos inscritos, o “6”, está associado à antiga Estrada Real que entrava em Caxias. Esta, após passar em frente ao Palácio Real, atravessava a velha ponte (4) de um só arco e bifurcava. Virando à esquerda, a via principal seguia para Paço de Arcos. Virando à direita, um ramo secundário entrava no Lagoal e prosseguia para montante,  acompanhando a margem direita da Ribeira de Barcarena no sentido de Laveiras(5). Mais adiante passaria para a outra margem na direcção do Mosteiro, depois Instituto de Reeducação Padre António de Oliveira.

Até finais do século passado, o itinerário “Caxias-Cartuxa” ainda era referenciado nos Planos Rodoviários (6) como o “ramo da Cartuxa”, com o número “4”, da Estrada Nacional, com o número “6”.       

Estranhámos a referência à Cartuxa, já que hoje existe uma estrada, assim designada,  que se situa entre a ponte do mesmo nome e a Estrada do Murganhal, sendo que o citado marco se encontra numa avenida hoje dedicada a António Florêncio dos Santos (7), pedagogo e diretor da Escola Académica, com actividades em Caxias/Lagoal na viragem do século XIX.

A presença Real em Caxias

Recentemente, a Torre do Tombo disponibilizou, no seu sítio da internet, um ficheiro descritivo da documentação existente relativa ao “Fundo da Cartuxa” (PT/TT/HLV). Nele é possível ler várias referências a um “caminho para Queluz” ou à “abertura da Estrada para Queluz”, a partir da segunda metade do século XVIII. Poder-se-á concluir que até à edificação da Quinta Real de Caxias não existia a actual ligação a Queluz, popularmente designada do Murganhal, com início na antiga Rua da Bela, hoje Dr. Jorge Rivotti, a partir da Estrada da Gibalta, antiga Estrada Real.

A partir de D. Maria I e D. Pedro III, o trajecto usado desde aquela residência palatina, com destino ao Palácio e Quinta Real de Caxias e, mais tarde, à Casa de Massarelos, será o mais usado pela família real. O lugar de Caxias torna-se progressivamente relevante nas deambulações e permanências régias. Se antes era pelas visitas ao Mosteiro de Laveiras, por altura de São Bruno, agora será pela estância nas residências da Quinta Real em períodos estivais.  Por esta altura começava a despontar a prática terapêutica  associada aos banhos de mar que irão tornar Caxias e localidades próximas, com as suas praias, um lugar apetecível para a Corte e aristocracia, muito antes de Cascais.

O impacto viário e urbanístico da nova via Marginal em Caxias

A actual Marginal, continuação da antiga Estrada da Circunvalação de Lisboa, cuja designação caiu em desuso, foi concluída em 1942. A sua construção viria a alterar o percurso antigo, entre a Gibalta e a Giribita, afastando-se do Palácio Real de Caxias por onde passava até àquela data (8).

Situada na Riviera Portuguesa, também referida como a Costa do Sol, a Marginal dos anos 40 era uma obra acarinhada pelo regime do Estado Novo e muito associada à figura do Engº. Duarte Pacheco. Contornando o antigo lugar de Caxias, a nova estrada acabaria por poupar parte do primitivo burgo caxiense, composto de casas apalaçadas e de veraneio. No entanto, o seu traçado levou à destruição de algumas edificações em Caxias, como a casa onde viveu Teixeira Gomes. Também sofreram mutilações o antigo Convento de Nossa Senhora da Boa Viagem e o Forte de Nossa Senhora do Vale (9), de que ainda restam vestígios. Este antigo bastião, destinado a cruzar fogo com as fortalezas em torno, passaria mais tarde a servir como porto de embarque da pólvora negra proveniente da Fábrica de Barcarena. No entanto, infelizmente, permanece quase desconhecido dos utilizadores do actual Passeio Marítimo.

A nova Avenida Marginal, galgando a praia junto ao Forte de São Bruno, venceria a Ribeira de Barcarena através de uma nova ponte, paralela à ferroviária já existente desde o século anterior. Depois, prosseguiria ao longo da margem do Tejo para Paço de Arcos e Cascais.

No Plano Rodoviário Nacional de 2000, a Marginal é referenciada como EN 6 e desaparece a referência ao tramo, ou ramo, da Cartuxa, assinalado como  “4” no marco mencionado. Esta estrutura, com a respectiva inscrição, terá sido ali colocada já depois do Novo Plano de Estradas de 1913. As grandes transformações urbanísticas ocorridas em Oeiras terão justificado a  posterior reclassificação da estrada, agora Avenida António Florêncio dos Santos,  e a sua integração na rede de Estradas Municipais. 

  • Fernando Lopes  

(1)

Marco com a inscrição EN 6 4 e CARTUXA

Nota: Fotografia do autor do artigo.

(2)

Cheias em Caxias 1967 com a localização do marco, aqui perfeitamente visível.

Fotografia obtida na Net

(3)

MP(eratori) / CAESARI/M(arco) (hedera) AVRELI / O PROBO / PIO FEL(ici) I(nvicto) […/…/…]
Tradução: Ao Imperador César Marco Aurélio Probo, Pio, Feliz, Invicto […]

Marco miliário romano . Museu da Cidade de Lisboa

(4)

Fotografia postal da Ponte de Caxias, no Lugar do Lagoal, nos primórdios do século XX, por onde ainda passava a Estrada Real, depois Nacional (Arquivo da CMO).

(5)

Pormenor em Carta dos Arredores de Lisboa, Folha 1, Oeiras(1843-46), onde é visível o trajecto da antiga Estrada Real à passagem por Caxias. Cartografia de Oeiras, 4 Séculos de Representação do Território (Do Século XVI ao Século XX), Coordenação de Joaquim Boiça, Ed. CMO, 2003.

(6)

Plano Rodoviário Nacional de 1945-Decreto Lei 34593, de 11 de Maio de 1945

(7)

António Florêncio dos Santos

Imagem recolhida na Net

(8)

Anterior Estrada Real, Actual Estrada da Gibalta frente ao palácio Real

Revista Branco e Negro. Semanário Ilustrado, nº, 78, 26 de Setembro de 1897.

(9)

Vestígios do antigo Forte de Nossa Senhora do Vale, parcialmente destruído para dar lugar à Marginal. A

construção recente do Passeio Marítimo viria a esconder grande parte dos vestígios observados na imagem.

Nota: Fotografia do autor do artigo.

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.