Quarentena Assintomática – XXXV
Autora – Ana M. Patacho
CRESCER NUM NOVO PARADIGMA
Hoje tive de sair para ir até ao cimo da rua ao talho do sr. João. Melhor dizendo: a mercearia do sr. João durante a pandemia.
Claro que o que lá fui fazer foi ir buscar o pão alentejano já fatiado fininho. Hoje era mesmo só o pão que eu desejava com fúria canibalesca quando saí de casa.
Mas as luvas, a máscara, os sapatos que tenho guardados à porta, os óculos que agora nunca uso em casa mas que não esqueço pôr quando vou à rua nem que seja só para despejar o lixo nos contentores.
Moro em Cascais mas todo o lixo da minha rua pertence a Oeiras. E desta vez sem culpa do vírus.
O pior foi nos dias em que não se podia passar de um concelho para outro! Em que contentores para o lixo, vidrões, porta óleos e de pilhas, me pareciam sempre exércitos mal-amanhados de furgões sem préstimo para engolirem os detritos das ruas mais próximas.
Hoje não fui ao lixo. Não tinha em casa quase nenhum. Ontem saí para desaguá-lo todo nos contentores cinzentos e sem graça.
Mas as garrafas de vários tamanhos, panóplias de gostos muito particulares, e os boiões dos pikles que vão acabando, levarei noutro dia.
Deixei também as folhas A4, que me submergem já, a aguardar nova oportunidade. Agora o lema é outro: Não fazer tudo no mesmo dia.
Adiar coisas para novo dia sempre diferente no igual que comporta. E até o lixo se adequa a que assim seja. Há que fazer render o tempo do isolamento.
Só a pandemia, que é totalmente injusta nesta indesejada visita alargada ao mundo inteiro, pode verdadeiramente viajar, não precisando sequer dos aviões que estão parados; de comboios e barcos a circularem; ou de fronteiras terrestres abertas em livre circulação como é o espaço Schengen.
Estancando as migrações de seres humanos que, na rota de profecias bíblicas, buscam apenas melhores condições de vida.
Varrendo a eito o planeta Terra num frenesim louco e demencial, o vírus ceifa velhos e novos transversalmente, sem olhar a quem.
Deixando um rasto de dor e impotência a pairar por sobre os escombros à escala global.
*
Penso no conceito que diz que é preciso uma aldeia para criar uma criança.
E olho com apreensão para a reabertura das creches. Como vai ser com as crianças que os pais lá deixarem ficar diariamente?
Uma angústia pedagógica para quem os vai receber e desenvolver um trabalho de que verdadeiramente nada podem saber ainda e, na verdade, quais as implicações.
Crianças numa idade em que estão a dar os primeiros passos para a aprendizagem da vida, num ambiente que lhes é tão hostil, vão começar no dia 18 de Maio, já na próxima segunda-feira, a regressarem às creches. Sem proximidades (q.b.); sem que possam trazer de casa brinquedos para poderem partilhar; sem contactos físicos com os outros meninos ou quaisquer objectos para a troca.
Afinal sem possibilidade de sociabilização, objectivo principal que os leva através dos pais, a estarem ali para benefício de uma aprendizagem de vida a começar agora.
Partilhar e sociabilizar com outras crianças, norteiam a necessidade actual, que substitui a aldeia pela tribo infantil, de uma mesma creche, como ponto fulcral para a educação nesta idade.
E não esqueçamos que eles serão, em todo o mundo, os homens e mulheres que vão constituir as sociedades. E o mundo será o que eles forem.
E com um iniciar tão espartilhado de regras contra-natura e tão pouco desejáveis portanto, como lhes é adverso este novo paradigma, que começa já esta próxima segunda-feira de Maio.
A transformar conceitos de actuação, embora com as angústias reais que estão presentes, mas a que eles não podem fugir e de que futuramente serão as primeiras vítimas.
Ou o novo paradigma deseja precisamente isto? Uma sociedade robotizada, de seres sem emoções, frios e individualistas, controlados ordeiramente como roupa mandada limpar a seco nas lavandarias a troco de lhes tirarem quaisquer resquícios de nódoas indesejáveis, como sejam pensamentos e, muito menos, acções de partilha ou de interajuda.
Seres obedecendo apenas a correias de execução à distância.
Pobres crianças com tamanho peso às costas. Pobre mundo que se nos apresenta com este novo paradigma.
2020, Ana M. Patacho, Sassoeiros, 16 de Maio
28 Maio, 2020
Este foi um dos aspetos que me martirizou durante algum tempo e que me levava a querer gritar…. PAREM…PENSEM…. NÃO VÊM QUE SÃO BEBÉS?…
As crianças só desenvolvem harmoniosamente se interagirem com o meio que as rodeia…com os afetos, com as gargalhadas e risadas boas e más, com tudo o que sempre soubemos que os nossos bebés.., as nossas crianças precisariam para virem a ser adultos, cidadãos bem formados…..
Assim, agradeci por, neste momento, não ser educadora de infância e por não ter crianças com menos de 3 anos.