Damos aqui, nesta 40ª participação, da autoria de Fátima Camilo, encerramento a este projecto, congratulando-nos pela participação verificada, por parte dos nossos associados. É nossa intenção sedimentar estes textos em livro a publicar brevemente.
Santo António confinado
Santo António veio à janela saber novas da pandemia já se vai desconfinando mas não tanto como ele queria
Cancelaram-lhe o arraial e as marchas na avenida vai tudo ficar confinado Raios partam esta vida
Em casa faltam-lhe as brasas para ir assando a sardinha lá as vai pondo na chapa e bebendo uma pinguinha
Na hora de ir para a mesa Estava meio atenazado faltava-lhe o caldo verde Com a rodela do afamado
Meio triste com tudo isto O que lhe veio à memória? As pobrezitas das noivas e a sua festa simplória
E à margem de tudo isto está o grande manjerico que não larga a alcachofra muito menos o namorico
Para o ano vai ser bonito se tudo for a dobrar é começar por uma festa até à última acabar
Nunca a aristocracia te perdoou: não aceitou a origem humilde a luminosidade do olhar… E o teu cantar português atravessou o Mundo encantou no mais profundo que a Música permite e hoje resiste num sentir universal e amor sublime! Amália és o Fado e és Portugal. És ainda a Voz que….”chora a cantar” e nos permite ouvir o nosso próprio Destino:
– aceitar o caminho da Felicidade: Um caminho eterno sem idade ou condição. Amália nunca a aristocracia portuguesa te perdoou: Nunca o sublime se alcança quando não se sabe ultrapassar a distância da humana condição. Amália Vives Agora e Portugal É um país melhor Porque te tem!
ai que saudades que tenho do tempo em que até parecia que tudo corria bem em que quem tinha dinheiro comprava um potente automóvel para o seu filho crescido e este ia acidentar-se em Monte Carlo
ai que saudades tremendas de ter o desejo que a televisão fosse a cores – quando ela se coloriu foi para mostrar mais camisolas de futebolistas e o grande Nemésio ficou para sempre a preto e branco
as saudades não me largam as que me recordam que havia a esperança de um dia, à força, sim só podia ser à força as coisas iam mudar e os mandões cinzentos daquela loja em São Bento seriam substituídos por gente mais séria
as saudades podem ser o motor para dias melhores lembro-me de querer votar e não me deixarem mas também tenho saudades de em tempos mais recentes pensar que ir à urna deixar um papel resolvia problemas
as saudades que eu tenho de ser esperançoso de tocar piano nos serões familiares de ter filhos pequenos – de ter netas pequenas e de eu próprio ser pequeno dos aeroportos serem caseiros de visitar museus sem ir para uma enorme fila de cometer um erro grave e poder emendá-lo
e as coisas boas que aconteceram? dessas não tenho saudades – tenho-as aqui e agora, e moro com elas
Encontro-me num estranho dia-a-dia onde a normalidade passou a ser esta. As máscaras obrigatórias no distanciamento físico. O medo que nos pesa em tudo que fazemos. No sonhar mais a dormir. Num acordar sobressaltado pelo sonho que esta pandemia me trouxe, cruzada pela minha outra pandemia própria, a da visão, entrechocando-se. Uma eu já tinha. Era só minha. Específica. Caótica. Tenebrosa. Agora encontram-se as duas. Sem os campos definidos. Mas acumulando-se sobrepostas, elas miscigenizam-se e aborrecem-me. Tornam-me a vida mais difícil. E como controlar pois as duas quando se sobrepõem deste modo? Tanto podendo ser às sete da manhã como às duas da noite, quando ainda não me deitei. Esta pandemia, a que dou o nome de Gerir duas pandemias, é o que me leva à necessidade da escrita de pequenos textos. Que vou publicando na NET graças à ESPAÇO-MEMÒRIA, gente com quem me relaciono há quinze anos, tantos os que vivo aqui na minha Sassoeiros a que sempre chamei Oeiras. Por tudo isto a minha confusão e estranheza quando oiço amigos dizerem que agora o confinamento que os proíbe de saírem de casa lhes tolheu a vontade de escrever. Sentem-se presos. Interditados para o fazerem. E eu, a quem a mente ensinou que não é o estar preso que me pode impedir de ter liberdade interior, continuo pois a senti-la percorrer-me. Ser companheira de mim própria. E navego com ela por entre o cruzamento das minhas duas pandemias, como se num corcel continuasse a voar tão livremente como antes. Liberdade é possível tê-la seja pois em que contexto for. É um exercício mental que podemos exercer através da Língua, nossa, a portuguesa, que no dia 5 de Maio de 2020, em pleno estado de emergência, foi celebrado pela primeira vez o seu Dia. Em confinamento no auge das notícias, eu senti o arame finíssimo em cima do qual nos tentávamos equilibrar. E do pouco que restava, a Língua era a vara que ajudava o nosso funambulismo. Se nas informações éramos bombardeados com TESTAR. TESTAR. TESTAR, eu respondia: Escrever. Escrever. Escrever. Era a minha capacidade de resposta ao vírus. Era a sobrevivência da minha mente. Era a única forma que eu tinha de me sentir em liberdade e independente de um contexto tão asfixiante. Mas se a mente é importante, o lado emocional não o é menos. E o saber que estes textos, em que havia tantas referências culturais, podiam ser partilhadas ainda que à distância agora, levava a que reflexos do meu coração podiam ser partilhados com quem os lessem, trazendo-me a mim de volta pedaços amigos das vozes que me acompanham, nem que seja só virtualmente. A cultura é pois boa, tanto para o coração como para a cabeça/mente. E a Língua portuguesa existe como Língua de Cultura no Mundo, seja na envelhecida Europa como na Ásia, África ou Oceania, reconhecida pela UNESCO desde o ano de 2020, e celebrada a 5 de Maio desse ano pela primeira vez no seu Dia Mundial. Que os futuros dias 5 de Maio possam ser celebrados sem confinamento. No pleno uso das liberdades. “Ser português não é uma nacionalidade mas um ofício”. Corroborando palavras de Batista Bastos, numa entrevista à RTP/MEMÒRIA, façamos da Língua uma arma. Que ao usá-la, o sentirmo-nos no arame das palavras, nos leve ao sonho e ao delírio, como se não estivéssemos confinados e a Liberdade pudesse ser total.
2025-11-09 - Especialmente para os avós e netos: anunciar o lançamento do livro «um cãozinho entrou na história», com autoria da nossa associada, Manuela Castro Neves, também na Galeria Verney, mas no próximo dia 09 de Novembro, às 11 horas.
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