Posts made in 2020


Autor: Henrique Seruca

Marmelada

Gostei sempre de marmelada. Falo da que é feita com marmelos, de preferência em casa. No entanto…

Há cinquenta anos, alguém me disse ter visto duas camas de bilros, do século XVII numa aldeia de Trás-os-Montes, na serra de Barroso. Segundo a informação, a dona queria vendê-las. Como eu apreciei sempre as coisas antigas, fiquei desejoso de ver as camas e, com sorte, comprá-las por bom preço.

Como não tinha carro, pedi emprestado o automóvel da minha sogra e, num fim de semana, e lá fui eu a caminho da dita aldeia, acompanhado pela minha mulher. Passei por Mondim de Basto, Ribeira de Pena, eu sei lá quantas terras. A certa altura a estrada deixou de ser alcatroada. O piso era de terra batida. Destemidamente, lá fui por entre a muita poeirada levantada pelo carro, até que me deparei com um enorme pedregulho que aflorava quase no meio do caminho, numa encruzilhada. Impossível passar com o carro, tanto mais que se avistavam, mais à frente, consideráveis covas. Ao longe avistavam-se os telhados da aldeia, como pontinhos no fundo de um vale profundo. Não havia outro remédio, tínhamos de seguir a pé e descer o monte.

Enquanto hesitávamos, pelo outro caminho da encruzilhada chegou até nós um grupo de crianças, umas seis ou sete, em idade escolar. Pés descalços, roupa remendada, sacola de pano a tiracolo. Saudaram-nos alegremente e nós retribuímos.

“O que fazem vocês aqui?”, perguntei eu.

“Vimos da escola e vamos agora para casa” – respondeu um dos petizes.

“Na vossa aldeia não há escola?” – perguntei eu, novamente”.

“Não senhor, a escola fica a seis quilómetros de casa” – retorquiu o miúdo.

Já não quis saber mais nada. Se aquelas crianças eram capazes de percorrer aqueles péssimos caminhos, desabrigados e descalços, à ida e à volta, eu não devia ter dificuldade em chegar à aldeia e regressar. E abalámos todos juntos, encosta abaixo.

Quase uma hora depois chegámos ao povoado. Casas de pedras nuas, com portas e janelas decrépitas, muito modestas. Eu e a minha companheira estávamos derreados. Os miúdos frescos como se tivessem acabado de sair da cama.

Indicaram-nos a morada onde estariam as tais camas. Batemos à porta e veio abrir uma simpática velhinha, de cabelos cor de cinza, vestida de negro.

“Sejam muito bem-vindos, façam o favor de entrar. Se vêm ver as camas, estão lá em cima” – esclareceu a anciã.

Subimos ao primeiro andar por uma fria escada de pedra e entrámos numa sala com uma grande e velha mesa de castanho e algumas cadeiras a pedirem conserto.

“Antes de irem ver as camas, façam o favor de se recomporem da caminhada. Vejo que estão cansados” – comentou a dona da casa.

Enquanto falava a velhinha pôs na mesa um canjirão de vinho caseiro, dois copos, dois pratos e facas, um naco de broa e uma malga de uma mistela compacta com vários tons de castanho.

“Esta marmelada é feita por mim. Desculpem, mas é casa de pobres e não tenho mais nada para vos oferecer. Façam o favor de comer qualquer coisa” – e foi pondo um grande naco da tal pasta em cada prato e encheu os copos com vinho.

“Se me derem licença eu vou arrumar o quarto, para verem as camas. Sirvam-se à vontade” – e abalou para o interior da casa.

A broa era compacta, mas aceitável. O vinho era ácido mas, com esforço, conseguia-se beber. O pior foi a dita marmelada. Era simplesmente intragável, verdadeiramente nauseabunda. Até o estômago se virava do avesso. O problema era grave, pois não se podia ter a indelicadeza de recusar uma oferta tão generosa, dada com o coração por aquela querida velhinha.

Troquei um olhar com a minha mulher, que quase vomitava, e decidi rapidamente. Peguei nos dois nacos de marmelada e estampei-os por baixo do tampo da mesa. A massa era tão pegajosa, que lá ficou presa e escondida, suponho que para sempre.

Entretanto regressava a dona da casa.

“Que bom, vejo que gostaram da marmelada e comeram tudo. Querem mais um bocado?”

Estremeci com verdadeiro terror.

“Muito obrigado, era muito boa (menti eu caridosamente), mas vamos jantar mal regressemos, daqui a pouco. Estamos satisfeitos” – apressei-me a responder.

Fomos ver as camas. Eram dois catres de castanho, mal-amanhados e apenas velhos, sem qualquer interesse. Agradecemos a hospitalidade e abalámos penosamente monte acima, até ao carro, que alcançámos ao cair da noite.

Estávamos tão cansados que já não tive coragem de regressar ao Porto. Nessa noite não jantámos e dormimos no carro, em plena estrada de terra batida, ainda com o horrível gosto da suposta marmelada a provocar pesadelos, e a rogar pragas a quem, maliciosamente, me tinha dado uma informação falsa sobre as camas.

Acordámos manhã cedo, com o chilrear das crianças que seguiam para escola, em alegre brincadeira.

Henrique Seruca

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Autor: Manuel Rodas

Bendito vírus!

Aproxima
Afasta
Limpa
Protege
Oculta
Tira
Despe
Esfrega
Mete
Lava
Seca
Salva
De costas
De frente
Tira
Introduz
Puxa
Cuidado
Por baixo
Por cima
Devagar
Escuda
Por dentro
Por fora
Enfia
Tira
Saca
Atenção
Nas extremidades
Mantém
Lava
Protege
Preserva
Escuda
Mete
Tira
Arranca
Cuidado
Nas bordas
Pela frente
Por trás
Abre
Fecha
Lava
Mete
Arranca
Fecha a boca
Com o dedo não
Cuida
Agasalha
Sustenta
Nas margens
Retira
Mete
Esfrega
Lava
As extremidades
Descalça
Sustenta
Estimula
Em cima
Em baixo
Abre
Fecha
Lava
Esfrega
….bendito vírus!

Manuel Rodas

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Autora: Graça Patrão

Homenagem a Mário Piçarra

27  fev. /2020

Homenagem  miragem    um  dia  sem   idade

Fnac, Oeiras

Foi      num dia de fevereiro    que  encontrei      como  por  acaso        O LIVRO DAS TRÉGUAS naquela  Livraria     e  palavras  ditas  endereçadas  a  outro  não-eu . E esperando  ansiando…   nunca  mais te vi. Tinha pensado dizer  AMIGO  e não disse. Ousara pensar que estarias  sempre à mesma hora. E   tudo   foi diferente:  um estremecimento súbito  recordou-me  que nem sequer adoeceste   não disseste  Adeus  e nenhuma outra Primavera  ouviria a tua música   o teu cantar terno e sossegado.

Há   porém   uma máquina   onde posso ouvir a tua voz. E  isso  entristece-me. Não consigo inserir o disco –  imaginar  que vives  naquela melodia  que  surge do   Não-Ser. E  pessoas apressadas  dirigem-se para a comemoração   que  as  sossega. A mim   a  Tranquilidade   não me chega ao cérebro. Mas os teus versos  impõem-se. Simplesmente. E tudo é a Natureza  que nos consome   que nos pertence   porque  o SER   é o TODO que flui  e combustões estremecem sem preconceitos    apenas  existem     aqui  estão    SOMOS NÓS!

Homenagem a Mário Piçarra onde li um poema de O LIVRO DAS TRÉGUAS de Lídia Jorge.

Graça Patrão

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Autor: Jorge Castro

POEMA PARA O DIA DE AMANHÃ

certo dia plantei uma metáfora
no húmus de vaga ideia
que sem saber me aflorara
adubei-a a réstias de inspiração
e protegia-a de agruras de ventos crus
ou de fera maresia

quando vi que enraizara
enxertei-lhe um soneto lento
de rima cadenciada
a meia altura da base
até um ponto incerto
algures entre o desconhecimento
e coisa nenhuma
só para ver se florescia

cerquei-a de vivências torpes
de mal-queridas verdades
de atropelos e más sortes
mas também de três sorrisos
um de papoila
outro estrela
e outro de ouvir o mar
onde o tempo esmorecia

e quando chegou Abril
já muitos anos depois
de um tempo de clausura
vi a aventura crescer
direita ao céu
perturbante
em cada folha uma pena
em cada fruto um poema
e Abril acontecia.

  • Jorge Castro
    em tempos de covid19, de 16 de Abril de 2020
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Autor: José d’Encarnação

A força do poder autárquico

            Mandar pôr a bandeira a meia haste em sinal de luto pela primeira vítima cascalense do vírus que nos assola e, também, por todos os que têm sucumbido poderá parecer um acto menor.

            Não creio.

            Simboliza, para além do mais, a presença do poder autárquico e constitui a prova do que amiúde se proclamava mas nunca deveras se sentira: são os executivos das câmaras municipais e das juntas de freguesia que estão mais perto da população, que sentem os seus anseios, que – se lhes derem meios – melhor e mais eficazmente os podem satisfazer.

            Mais uma vez, Cascais está na linha da frente desse combate e soube ocupar a posição que o Governo central não poderia. A comunicação diária do Presidente aos munícipes a dar conta do que se está a fazer, e como, mostra bem o que deve ser essa imprescindível política de proximidade.

            Nunca como nestes dias se viram nas televisões tantos nomes de presidentes de Câmara ou de Juntas de Freguesia a pugnar pelos seus munícipes e fregueses. Nunca como nestes dias se arvorou bem alto o que Cascais há muito arvora: as pessoas em primeiro lugar!

            Muito há, pois, para nos congratularmos.

            Todos estamos plenamente conscientes que vai haver um d. c., «depois do corona».

            Mudará seguramente o nosso modo de vida, porque já é um encanto olhar para além do mar e ver, nítido, a sul, o Cabo Espichel, porque drasticamente diminuiu a poluição atmosférica.

            Já começamos a ter noção mais clara do que é ser vizinho e da necessidade de haver os contactos de uns e outros, não para andarmos metidos em casa alheia, mas para sabermos se está tudo bem e comunicar no momento em que se dá conta de alguma anomalia.

            Já começamos a saber responder ao «bom dia!», à «boa tarde!».

            Quanto estranhava, até há pouco, quando, no passeio pelo bairro com o Spike, eu saudava quem se cruzava comigo e nenhuma resposta eu recebia. Agora, não! Até o condutor do autocarro se saúda, por se reconhecer o seu labor social, o seu espírito de serviço. Justamente isso me chamou a atenção em Londres: saudava-se o motorista ao entrar no autocarro, ele respondia num sorriso, e agradecia-se-lhe ao sair e ele correspondia!

            Uma palavra ainda para a Comunicação Social local e regional.

            É nestas ocasiões que o seu papel se mostra imprescindível. Uma rádio local que nos mantenha informados, um jornal que supra as mil e uma mensagens que nos atafulham o telemóvel e nós queremos é saber do nosso concelho, da nossa terra!

            O director de um dos jornais a que mui gostosamente dou colaboração pensou em suspender a publicação, devido a não existirem eventos a noticiar nem publicidade que o mantivesse. E o executivo camarário impôs-se: «Não, senhor! Publica, pois! Nós ajudamos!».

            Vamos tendo máscaras, centros de diagnóstico, alojamento em hotéis e alimentação para o pessoal da linha da frente, graças à forte colaboração de todos. Rapidamente, os técnicos alteraram as linhas de produção para satisfazerem as necessidades prementes…

            Vamos levar a embarcação a bom porto!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 321, 2020-04-08, p. 6.

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Autor: José d’Encarnação

«Está um lindo dia pra sorrir!»

            Duas secções reúnem as preferências dos leitores, sobretudo da imprensa local e regional: a necrologia e uma outra, que nunca a ser mesmo secção porque, amiúde, quase serve para tapar um buraco na paginação. Essoutra poderia chamar-se prosaicamente «anedotas» ou, de preferência, «Rir é o melhor remédio». Prefiro este título porque, dizem os entendidos, rir ou, simplesmente, sorrir é atitude que faz trabalhar todos os músculos da cara e, desta forma, se mantém um rosto livre de desgostoso encarquilhamento. Recordo-me de um conferencista que incitou a assistência a abrir a janela pela manhã e proclamar «Está um lindo dia pra sorrir!». Desde esse dia, o despertador do meu telemóvel tem mesmo essa frase! E dá resultado!

            Com isto tudo, perdi a necrologia pelo caminho; mas não interessa, porque toda a gente sabe porque é que gosta de ler a necrologia!…

            Dizem que o Português é danado para anedotas. As picantes, as menos picantes, as de humor negro (estas, umas das preferidas)… Sempre ouvi afirmar que, no decorrer da II Grande Guerra, corria uma observação: «Se queres ouvir uma boa anedota sobre a guerra, vai a Portugal!».

            Portanto, guerra é guerra, Covid-19 dá-nos luta e nós já lhe declarámos guerra cerrada. Esse, o motivo porque recebemos diariamente uma catrefada de anedotas acerca do malandro. Sim, malandro é e não tem graça nenhuma. Entra, sorrateiro, goelas adentro, instala-se, nem sequer atira um piropo às células, o que ele quer é comê-las e leva tudo de vencida. Poderia ainda fazer uma pausa, encantar-se com uma ou outra das celulazinhas que tão sossegadas estavam no seu labor e ficar enamorado, quietinho. Nada! É para matar, é para matar e pronto! Violência doméstica ao mais alto grau! E pobres dos leucócitos que nem tempo lhes dá para entrarem em acção.

            De violência se queixou também o canito:

            – Raios o partam, esse tal de covid! Toda a vizinhança me quer levar a passear. Estou que nem posso!

            Do vírus não escapou a Última Ceia, de Leonardo da Vinci, que, como se sabe, se mostra no Convento de S. Maria delle Grazie, em Milão, um dos epicentros da peste. Primeiro, Cristo e os Apóstolos fugiram com medo; depois, voltaram, mas houve logo quem deles fizesse queixinha e entrou a guarda:

            – Andor!… O que é?… Quero lá saber quem é o teu pai!… Isto é um ajuntamento, tá proibido, tudo prá esquadra já!

                                                                                   José d’Encarnação

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