Autor: Henrique Seruca
Marmelada
Gostei sempre de marmelada. Falo da que é feita com marmelos, de preferência em casa. No entanto…
Há cinquenta anos, alguém me disse ter visto duas camas de bilros, do século XVII numa aldeia de Trás-os-Montes, na serra de Barroso. Segundo a informação, a dona queria vendê-las. Como eu apreciei sempre as coisas antigas, fiquei desejoso de ver as camas e, com sorte, comprá-las por bom preço.
Como não tinha carro, pedi emprestado o automóvel da minha sogra e, num fim de semana, e lá fui eu a caminho da dita aldeia, acompanhado pela minha mulher. Passei por Mondim de Basto, Ribeira de Pena, eu sei lá quantas terras. A certa altura a estrada deixou de ser alcatroada. O piso era de terra batida. Destemidamente, lá fui por entre a muita poeirada levantada pelo carro, até que me deparei com um enorme pedregulho que aflorava quase no meio do caminho, numa encruzilhada. Impossível passar com o carro, tanto mais que se avistavam, mais à frente, consideráveis covas. Ao longe avistavam-se os telhados da aldeia, como pontinhos no fundo de um vale profundo. Não havia outro remédio, tínhamos de seguir a pé e descer o monte.
Enquanto hesitávamos, pelo outro caminho da encruzilhada chegou até nós um grupo de crianças, umas seis ou sete, em idade escolar. Pés descalços, roupa remendada, sacola de pano a tiracolo. Saudaram-nos alegremente e nós retribuímos.
“O que fazem vocês aqui?”, perguntei eu.
“Vimos da escola e vamos agora para casa” – respondeu um dos petizes.
“Na vossa aldeia não há escola?” – perguntei eu, novamente”.
“Não senhor, a escola fica a seis quilómetros de casa” – retorquiu o miúdo.
Já não quis saber mais nada. Se aquelas crianças eram capazes de percorrer aqueles péssimos caminhos, desabrigados e descalços, à ida e à volta, eu não devia ter dificuldade em chegar à aldeia e regressar. E abalámos todos juntos, encosta abaixo.
Quase uma hora depois chegámos ao povoado. Casas de pedras nuas, com portas e janelas decrépitas, muito modestas. Eu e a minha companheira estávamos derreados. Os miúdos frescos como se tivessem acabado de sair da cama.
Indicaram-nos a morada onde estariam as tais camas. Batemos à porta e veio abrir uma simpática velhinha, de cabelos cor de cinza, vestida de negro.
“Sejam muito bem-vindos, façam o favor de entrar. Se vêm ver as camas, estão lá em cima” – esclareceu a anciã.
Subimos ao primeiro andar por uma fria escada de pedra e entrámos numa sala com uma grande e velha mesa de castanho e algumas cadeiras a pedirem conserto.
“Antes de irem ver as camas, façam o favor de se recomporem da caminhada. Vejo que estão cansados” – comentou a dona da casa.
Enquanto falava a velhinha pôs na mesa um canjirão de vinho caseiro, dois copos, dois pratos e facas, um naco de broa e uma malga de uma mistela compacta com vários tons de castanho.
“Esta marmelada é feita por mim. Desculpem, mas é casa de pobres e não tenho mais nada para vos oferecer. Façam o favor de comer qualquer coisa” – e foi pondo um grande naco da tal pasta em cada prato e encheu os copos com vinho.
“Se me derem licença eu vou arrumar o quarto, para verem as camas. Sirvam-se à vontade” – e abalou para o interior da casa.
A broa era compacta, mas aceitável. O vinho era ácido mas, com esforço, conseguia-se beber. O pior foi a dita marmelada. Era simplesmente intragável, verdadeiramente nauseabunda. Até o estômago se virava do avesso. O problema era grave, pois não se podia ter a indelicadeza de recusar uma oferta tão generosa, dada com o coração por aquela querida velhinha.
Troquei um olhar com a minha mulher, que quase vomitava, e decidi rapidamente. Peguei nos dois nacos de marmelada e estampei-os por baixo do tampo da mesa. A massa era tão pegajosa, que lá ficou presa e escondida, suponho que para sempre.
Entretanto regressava a dona da casa.
“Que bom, vejo que gostaram da marmelada e comeram tudo. Querem mais um bocado?”
Estremeci com verdadeiro terror.
“Muito obrigado, era muito boa (menti eu caridosamente), mas vamos jantar mal regressemos, daqui a pouco. Estamos satisfeitos” – apressei-me a responder.
Fomos ver as camas. Eram dois catres de castanho, mal-amanhados e apenas velhos, sem qualquer interesse. Agradecemos a hospitalidade e abalámos penosamente monte acima, até ao carro, que alcançámos ao cair da noite.
Estávamos tão cansados que já não tive coragem de regressar ao Porto. Nessa noite não jantámos e dormimos no carro, em plena estrada de terra batida, ainda com o horrível gosto da suposta marmelada a provocar pesadelos, e a rogar pragas a quem, maliciosamente, me tinha dado uma informação falsa sobre as camas.
Acordámos manhã cedo, com o chilrear das crianças que seguiam para escola, em alegre brincadeira.
Henrique Seruca
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Autor: Manuel Rodas
Bendito vírus!
Aproxima
Afasta
Limpa
Protege
Oculta
Tira
Despe
Esfrega
Mete
Lava
Seca
Salva
De costas
De frente
Tira
Introduz
Puxa
Cuidado
Por baixo
Por cima
Devagar
Escuda
Por dentro
Por fora
Enfia
Tira
Saca
Atenção
Nas extremidades
Mantém
Lava
Protege
Preserva
Escuda
Mete
Tira
Arranca
Cuidado
Nas bordas
Pela frente
Por trás
Abre
Fecha
Lava
Mete
Arranca
Fecha a boca
Com o dedo não
Cuida
Agasalha
Sustenta
Nas margens
Retira
Mete
Esfrega
Lava
As extremidades
Descalça
Sustenta
Estimula
Em cima
Em baixo
Abre
Fecha
Lava
Esfrega
….bendito vírus!
Manuel Rodas
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Autora: Graça Patrão
Homenagem a Mário Piçarra
27 fev. /2020
Homenagem miragem
um dia sem
idade
Fnac, Oeiras
Foi num dia de fevereiro que encontrei
como por acaso
O LIVRO DAS TRÉGUAS naquela
Livraria e palavras
ditas endereçadas a
outro não-eu . E esperando ansiando…
nunca mais te vi. Tinha pensado
dizer AMIGO e não disse. Ousara pensar que estarias sempre à mesma hora. E tudo
foi diferente: um estremecimento
súbito recordou-me que nem sequer adoeceste não disseste Adeus e
nenhuma outra Primavera ouviria a tua
música o teu cantar terno e sossegado.
Há porém uma máquina
onde posso ouvir a tua voz. E
isso entristece-me. Não consigo
inserir o disco – imaginar que vives
naquela melodia que surge do
Não-Ser. E pessoas apressadas dirigem-se para a comemoração que
as sossega. A mim a Tranquilidade não me chega ao cérebro. Mas os teus
versos impõem-se. Simplesmente. E tudo é
a Natureza que nos consome que nos pertence porque
o SER é o TODO que flui e combustões estremecem sem preconceitos apenas
existem aqui
estão SOMOS NÓS!
Homenagem a Mário Piçarra onde li um poema de O LIVRO DAS
TRÉGUAS de Lídia Jorge.
Graça Patrão
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Autor: Jorge Castro
POEMA PARA O DIA DE AMANHÃ
certo dia plantei uma metáfora
no húmus de vaga ideia
que sem saber me aflorara
adubei-a a réstias de inspiração
e protegia-a de agruras de ventos crus
ou de fera maresia
quando vi que enraizara
enxertei-lhe um soneto lento
de rima cadenciada
a meia altura da base
até um ponto incerto
algures entre o desconhecimento
e coisa nenhuma
só para ver se florescia
cerquei-a de vivências torpes
de mal-queridas verdades
de atropelos e más sortes
mas também de três sorrisos
um de papoila
outro estrela
e outro de ouvir o mar
onde o tempo esmorecia
e quando chegou Abril
já muitos anos depois
de um tempo de clausura
vi a aventura crescer
direita ao céu
perturbante
em cada folha uma pena
em cada fruto um poema
e Abril acontecia.
- Jorge Castro
em tempos de covid19, de 16 de Abril de 2020
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Autor: José d’Encarnação
A força do poder autárquico
Mandar
pôr a bandeira a meia haste em sinal de luto pela primeira vítima cascalense do
vírus que nos assola e, também, por todos os que têm sucumbido poderá parecer
um acto menor.
Não
creio.
Simboliza,
para além do mais, a presença do poder autárquico e constitui a prova do que amiúde
se proclamava mas nunca deveras se sentira: são os executivos das câmaras municipais
e das juntas de freguesia que estão mais perto da população,
que sentem os seus anseios, que – se lhes derem meios – melhor e mais
eficazmente os podem satisfazer.
Mais
uma vez, Cascais está na linha da frente desse combate e soube ocupar a posição que o Governo central não poderia. A comunicação diária do Presidente aos munícipes a dar conta
do que se está a fazer, e como, mostra bem o que deve ser essa imprescindível política
de proximidade.
Nunca
como nestes dias se viram nas televisões tantos nomes de presidentes de Câmara
ou de Juntas de Freguesia a pugnar pelos seus munícipes e fregueses. Nunca como
nestes dias se arvorou bem alto o que Cascais há muito arvora: as pessoas em
primeiro lugar!
Muito
há, pois, para nos congratularmos.
Todos
estamos plenamente conscientes que vai haver um d. c., «depois do corona».
Mudará
seguramente o nosso modo de vida, porque já é um encanto olhar para além do mar
e ver, nítido, a sul, o Cabo Espichel, porque drasticamente diminuiu a poluição atmosférica.
Já
começamos a ter noção mais clara do
que é ser vizinho e da necessidade de haver os contactos de uns e outros, não
para andarmos metidos em casa alheia, mas para sabermos se está tudo bem e
comunicar no momento em que se dá conta de alguma anomalia.
Já
começamos a saber responder ao «bom dia!», à «boa tarde!».
Quanto
estranhava, até há pouco, quando, no passeio pelo bairro com o Spike, eu
saudava quem se cruzava comigo e nenhuma resposta eu recebia. Agora, não! Até o
condutor do autocarro se saúda, por se reconhecer o seu labor social, o seu espírito
de serviço. Justamente isso me chamou a atenção
em Londres: saudava-se o motorista ao entrar no autocarro, ele respondia num
sorriso, e agradecia-se-lhe ao sair e ele correspondia!
Uma
palavra ainda para a Comunicação
Social local e regional.
É
nestas ocasiões que o seu papel se mostra imprescindível. Uma rádio local que
nos mantenha informados, um jornal que supra as mil e uma mensagens que nos atafulham
o telemóvel e nós queremos é saber do nosso concelho, da nossa terra!
O
director de um dos jornais a que mui gostosamente dou colaboração pensou em suspender a publicação, devido a não existirem eventos a noticiar nem
publicidade que o mantivesse. E o executivo camarário impôs-se: «Não, senhor!
Publica, pois! Nós ajudamos!».
Vamos
tendo máscaras, centros de diagnóstico, alojamento em hotéis e alimentação para o pessoal da linha da frente, graças à
forte colaboração de todos.
Rapidamente, os técnicos alteraram as linhas de produção
para satisfazerem as necessidades prementes…
Vamos
levar a embarcação a bom porto!
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 321, 2020-04-08, p. 6.
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Autor: José d’Encarnação
«Está um lindo dia pra sorrir!»
Duas secções
reúnem as preferências dos leitores, sobretudo da imprensa local e regional: a
necrologia e uma outra, que nunca a ser mesmo secção
porque, amiúde, quase serve para tapar um buraco na paginação. Essoutra poderia chamar-se prosaicamente
«anedotas» ou, de preferência, «Rir é o melhor remédio». Prefiro este título
porque, dizem os entendidos, rir ou, simplesmente, sorrir é atitude que faz trabalhar
todos os músculos da cara e, desta forma, se mantém um rosto livre de
desgostoso encarquilhamento. Recordo-me de um conferencista que incitou a assistência
a abrir a janela pela manhã e proclamar «Está um lindo dia pra sorrir!». Desde
esse dia, o despertador do meu telemóvel tem mesmo essa frase! E dá resultado!
Com
isto tudo, perdi a necrologia pelo caminho; mas não interessa, porque toda a
gente sabe porque é que gosta de ler a necrologia!…
Dizem
que o Português é danado para anedotas. As picantes, as menos picantes, as de
humor negro (estas, umas das preferidas)… Sempre ouvi afirmar que, no
decorrer da II Grande Guerra, corria uma observação:
«Se queres ouvir uma boa anedota sobre a guerra, vai a Portugal!».
Portanto,
guerra é guerra, Covid-19 dá-nos luta e nós já lhe declarámos guerra cerrada.
Esse, o motivo porque recebemos diariamente uma catrefada de anedotas acerca do
malandro. Sim, malandro é e não tem graça nenhuma. Entra, sorrateiro, goelas
adentro, instala-se, nem sequer atira um piropo às células, o que ele quer é comê-las
e leva tudo de vencida. Poderia ainda fazer uma pausa, encantar-se com uma ou
outra das celulazinhas que tão sossegadas estavam no seu labor e ficar enamorado,
quietinho. Nada! É para matar, é para matar e pronto! Violência doméstica ao
mais alto grau! E pobres dos leucócitos que nem tempo lhes dá para entrarem em
acção.
De
violência se queixou também o canito:
–
Raios o partam, esse tal de covid! Toda a vizinhança me quer levar a passear.
Estou que nem posso!
Do
vírus não escapou a Última Ceia, de Leonardo da Vinci, que, como se sabe, se
mostra no Convento de S. Maria delle Grazie, em Milão, um dos epicentros da
peste. Primeiro, Cristo e os Apóstolos fugiram com medo; depois, voltaram, mas houve
logo quem deles fizesse queixinha e entrou a guarda:
–
Andor!… O que é?… Quero lá saber quem é o teu pai!… Isto é um ajuntamento,
tá proibido, tudo prá esquadra já!
José d’Encarnação
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