Posts made in 2020


Autor: José d’Encarnação

Os vizinhos

            D. Lurdes morava paredes-meias com o professor.

            Quando se encontravam, era habitual o «Olá, vizinha, como vai?», «Olá, vizinho, bom dia!».

            Um dia, porém, o professor tomou posse como Presidente da República. Dias depois, ao reencontrá-lo, D. Lurdes ficou atrapalhada, porque não sabia como falar-lhe. O professor apercebeu-se da atrapalhação e saudou:

            – Olá, vizinha!

            E ela respondeu como dantes:

            – Olá, vizinho, como vai?

            E riram-se, num cumprimento amigável.

            A história é real, como facilmente se compreende.

            E conto-a em pleno auge da pandemia do coronavírus, quando imagino – como todos, decerto – que a História futura, caso a Humanidade consiga sobreviver, terá a partir de 2020 uma nova cronologia a. C. e d. C., em que o C. significará não Cristo mas Corona. Vamos, não há dúvida, alterar por completo o nosso paradigma de vida, dar muito menos importância a pormenores que ora vemos serem de nenhum interesse e dar muito maior importância a outros, como este da vizinhança.

            Um amigo meu, por sinal poeta com obra publicada, já com a provecta idade de mais de 80 anos, «desapareceu do mapa». Perguntei por ele aos vizinhos e amigos mais chegados, porque não atendia telefone nem telemóvel nem respondia ao correio electrónico. Sabia-se que ele tinha um filho, que por sinal nunca se vira. Perguntei na Junta de Freguesia com a qual ele amiúde colaborara. Ninguém sabe do senhor! Vagamente, que foi para um lar. Desconhece-se qual, desconhece-se o contacto do filho… E todos estamos com pena de não lhe poder falar, dar-lhe quiçá uma palavra de alento. Se calhar, até já faleceu e ninguém disse nada!

            No tempo dos Romanos, os habitantes de um «vicus», a aldeia, eram os «vicini», os vizinhos. De «vicus» veio «beco», passagem estreita. Não são becos as nossas aldeias e bairros, mas essa prístina ideia de proximidade deve continuar a prevalecer. Não apenas na saudação matinal «olá, vizinha!» mas no facto de termos de todos os vizinhos e eles terem de nós os necessários contactos, para mantermos estreitas as relações em tempo de… pandemias! E não só!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 281, 20-04-2020, p. 15.

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Autor: José d’Encarnação

O gigante com os pés de barro

            Inevitável que a crónica de hoje seja a propósito do que, a nível planetário, estamos a viver, o clima de guerra biológica total.

            E ocorreu-me, necessariamente, como de certeza ocorreu a muitos, a imagem da grande estátua com os pés de barro, imagem amiúde usada para mostrar que, para ser grande em todos os pontos de vista, importa sê-lo da cabeça até aos pés! E os gigantes de pés de barro, afinal, ostentam ser deslumbrantes, mas faltam-lhes as bases – e leve enxurrada basta para que toda a sua prosápia caia por terra.

            Grande era, até ao aparecimento do coronavírus, quem detinha enormes empresas ou inabalável potencial bélico!… E um viruzinho malandro, surgido não se sabe bem donde, às escondidas, veio mostrar que isso das grandes empresas, do poder político e económico imperturbável, do potencial bélico constituía, afinal, presa fácil de um bichinho minúsculo, invisível a olho nu, que até nem se sabe como se propaga nem que cara tem, ainda que, nos ecrãs das televisões, nos aparecer a sua imagem esférica, cheia de pólipos ameaçadores. A imagem até nem é desengraçada de todo e vai, decerto, servir de modelo para peluches, quando a pandemia passar…

            Outras imagens nos surgem também: as da guerra no Médio Oriente. E não só. As intermináveis filas de refugiados a caminho de fronteiras, para além das quais (pensam!) as condições de sobrevivência serão melhores. E nós, os que, felizmente, nascemos num pais pequenino e minimamente sossegado, nós, que não temos a menor ideia do que seja isso de andar com os parcos pertences às costas, fugindo às balas e às armadilhas, nós ouvimos falar da imagem «a vida é como um carrossel, ora estamos em cima, ora em baixo», como em montanha russa, mas não consciencializamos exactamente o que é mesmo essa história da precariedade da vida. Sim, o treinador de futebol, mesmo que o clube tenha vendido os melhores jogadores, é obrigado a ganhar sempre, sob pena de ser despedido. Hoje está nos píncaros, amanhã, se a equipa perder, é ele que perde e vai para o mais profundo dos infernos. Há um dito latino que o retrata bem «sic transit gloria mundi!», «assim passa a glória do mundo!»…

            Passa, passagem, transitoriedade, caminhada…

            Nestes dias de quarentena, fomos obrigados a parar. E é bom parar. David Kundtz escreveu mesmo um livro a que, na tradução portuguesa, se deu o título de «Parar (Como parar quando temos de continuar)». E esta paragem forçada despertou-nos, na verdade, para um novo paradigma. Depois do coronavírus, nada nas nossas vidas vai ser como dantes!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 774, 01-04-2020, p. 11.

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Autora: Ana T. Freitas

Há dias …

Há dias que a gente se lembra tanto de tanto …

Hoje, o meu irmão mais velho faz anos, lembrei-me agora! Como faço todos os anos, telefonei-lhe e felicitei-o.

Hoje, telefonei à minha mãe, como faço todos os dias. Lembrei-me de lhe pedir para me ensinar a podar as minhas videiras, apenas duas, que se tinham multiplicado em três, mistério da natureza! Já sei que não é a altura para o fazer, que já o devia ter feito, adiantei-me ao ralhete.

Hoje, a minha mãe ralhou comigo, como acontece com frequência por isto ou aquilo! Lembrei-me que a minha mãe continua a ter as suas regras como as únicas verdades, para si e para os outros.

Hoje, a minha mãe ainda me vê como uma catraia, como vê sempre! Que nada sabe da vida, irresponsável! Lembrei-me que alguns conflitos tivemos em situações mais delicadas ao longo da vida.

Hoje, a minha mãe teve razão, como poucas vezes a teve! As videiras já tinham rebentos viçosos, fetos verdinhos, alguns dos quais, doridamente, tive que cortar. Lembrei-me que, por vezes, isso tem que ser.

Hoje, a minha mãe muito me ensinou sobre a arte de podar, como muitas vezes me ensina sobre a sua culinária. Lembrei-me que frequentemente esta situação me acalenta.

Hoje, a minha mãe despediu-se de mim despachadamente, como tantas vezes me despacha. Lembrei-me que lhe interrompi algum programa televisivo do seu interesse ou a reza do terço.

Hoje, passei o resto do Sol desta tarde com o meu Pai. Absorta fiquei a escutar o tique-taque cadenciado da tesoura que, sabedora, carinhosamente debruçada ia cortando os cabelos esguedelhados e espigados das videiras em bardos à espera. Era uma música vinda das entranhas da terra, do fundo dos tempos que, com ternura, rasgava o silêncio, afagava o Douro lá em baixo, ecoava nos montes num eterno retorno e enlevava os céus num apaziguamento poético …

Hoje, um amigo telefonou-me e revelou-me um pouco do tanto que, saudosamente, se tinha lembrado …

Ana T. Freitas – Coruche, 08/ 11 de Abril de 2020

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Autora: Graça Patrão

Cá estamos  coronavírus   covid 19

Fulgurante filme  de  ficção   em que uma jovem Mãe  amamenta o filho recém nascido.

Com  máscara  viseira  luvas.   Entreaberta  apenas   a  ponta do seio   e  o  bébé  olhando 

a   mãe    vê    e não  estranha    continua  a ser  a sua  mãe  –  tem a certeza, por isso pode alimentar-se  dela    amá-la  e   reconhecê-la    quando    num dia futuro   vir  a  mãe sem máscara,   os  olhos ternos   o cabelo  macio  e   nesse dia    já  saberá  dizer:

 – Mãe, estamos aqui…que planeta é este? (perguntará)

– e a Mãe dirá:

– Filho, não sei! Acabámos de chegar…   ainda não foram  dadas instruções  sobre o funcionamento  desta nova  vida    sem máquinas    sem horários complicados…Vamos continuar a orientarmo-nos pela luz do Sol!

A Mãe sorriu: o filho tinha crescido tanto!

Graça Patrão,18-03-2020

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Autor: Eduardo Martins

CORONA VIRUS

A CORONA DA MÃE, E O CORONALHO DO PAI

O revolucionário que com voz de quem tudo come,

bramava: “DE PÉ Ó VÍTIMAS DA FOME!”,

agora grita para nós: “ENCLAUSURADOS DO VIRUS!

 NÃO PONHAM O PÉ LÁ FORA!

NEM AO BICHO DÊEM TIROS!”

Muito pouco então nos resta

senão fingir que “hoje cá em casa há festa!”

nem que seja do “Pijama”,

ou até mesmo do “Roupão”…

seja roncando na cama,

ou arrastando o pé no chão…

Ou vendo a CMTV,

 que repete imensas desgraças, e as revê…

embora esteja a perder o primeiro lugar… o quê???!!!

Sim! A concorrência “Feicebuqueira”

tem arranjado maneira,

de nos animar, não nos contando misérias,

mas mostrando umas pilhérias,

disparatadas Q.B.

para levantar o moral desta vida de clausura, já se vê…

 Termino esta intervenção “Coronária”, citando o Raul Solnado,

ultimamente muito glosado,

às vezes com alguns matizes:

“Se conseguirem… façam favor de ser felizes…”

Eduardo Martins – Carcavelos, 24 de Março de 2020

CORONA RAP

O Corona anda numa fona,

a dar-nos cabo da mona,

e do resto dos corpinhos,

seja em grupo ou sozinhos!

Parece que veio da China e dum morcego,

e não nos deixa em sossego!

Mas há quem diga que veio doutros lados,

ali duns norte americanos unidos estados…

e que se espalhou de uma forma total,

fosse por acaso ou fosse intencional”!

As teorias conspirativas,

são muito imaginativas!

Eu agora junto a derradeira,

e esta é que é de facto verdadeira!

Foi o Fleming! Não o da penicilina,

mas o Ian! Que não tinha nada a ver com medicina,

mas criou o Bond, James Bond,

e está agora, sabe-se lá por onde,

a inventar mais uns agentes do mal,

que criaram um coronavírus fatal,

para darem cabo da população mundial toda!

E para este seres maléficos, o resto que se …

Eduardo Martins – Carcavelos, 26 de Março de 2020

POEMA QUASE ERÓTICO,

(OU SIMPLESMENTE VIRÓTICO?)

Eu andava numa fona,

e nunca mais vinha à tona

a rima que eu queria…

para rimar com CORONA…

À mente só me surgia

aquela da Margarida que ia à fonte

com sapatinhos de lona,

mas que escorregou, partiu a bilha,

e espetou os cacos na testa…

Claro que ainda não foi desta

que a pobre da Margarida,

embora estando ferida,

e alegadamente infectada,

 chegou a ser internada…

nem chegou a ser testada,

e nem sequer foi fadada

para poder ser tratada…

E a rima tão procurada,

nos entrefolhos da mente,

não se sente nem pressente…

ter vontade de subir…

De subir ou de se vir?

De ser vír…us, ou  re…virus…alho?

Quero rimar com… tele trabalho…

Borrifo-me com algum orvalho…

Como bacalhau com alho…

Sinto-me às vezes paspalho…

E eu já estou muito alarmado…

não sei se fico confinado,

e acabo já com o poema,

ou contrariando o decretado,

vou por aí desorientado,

buscando a porta de um talho

para pendurar lá o tema…

Por muito que se imaginasse,

que se pensasse, ponderasse,

desejasse, avaliasse,

avançasse, recuasse,

por muito que eu me desinfectasse,

por muito que eu continuasse

e nunca mais lá chegasse

por fim, disse COVIDASSE!

FINDASSE!!!

Eduardo Martins – Carcavelos, 1 de Abril de 2020

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