Autora: Maria Lúcia Saraiva
Era uma vez uma Menina
Nem todos os princípios de vida são fáceis e felizes para alguns…
Vou contar uma história começando da forma tradicional:
Era uma vez, uma menina, simplesmente uma menina, com muitos sonhos; muito
sensível, uma sonhadora que se sentia muito só, com fantasmas, (próprios da
idade), apesar de viver numa numerosa Família…
O seu rosto era marcado por uns olhos negros brilhantes, um nariz
arrebitado e perfeito e uma boca bem delineada que poderia expandir-se em
sorrisos, mas não, a sua expressividade era de tristeza.
Quando ela ia passar férias na casa de campo, pediu a um dos empregados para lhe fazer um baloiço no imbondeiro, junto ao rio, e aquele lugar, passou a ser o seu refúgio, pensava no «Zezé – do livro Meu Pé de Laranja Lima» -, aquela gigantesca árvore passaria a ser a sua confidente e falava com ela sobre os seus medos e anseios e perguntava-lhe o que fazer, para os ultrapassar, e a resposta vinha nos cânticos e chilreios bem animados da passarada.
Cresceu, fez-se mulher de trato simples, muito meiga e tímida, talvez por
isso, todos gostavam dela.
Não precisava de muitos enfeites, para dar nas vistas, porque ela exibia
uma postura corporal e uma beleza peculiar.
A sua infância fora de aprendizagem imposta, teve que se dedicar aos bordados, à costura, ao tricot, ao crochet, aos tachos, a arrumação de uma casa e a mesa de refeições tinha que ser posta com todo o rigor e requinte, ainda que fosse a comida mais simples. Uma verdadeira «Dona de Casa».
O seu olhar era triste e já carregava alguma dor de histórias da sua
infância mal resolvidas ou impróprias para a sua tenra idade. Ainda assim o seu
propósito não se alterou e manteve a determinação em realizar os seus sonhos.
Nas noites carregadas de nuvens negras ela pintava as estrelas no céu,
preenchia assim os seus vazios, e afastava as suas inseguranças, que eram
muitas, não sabia ainda ao certo como delinear o seu futuro, nos seus verdes
anos.
Na sua infância nunca podia ler à noite, porque não a deixavam, não havia
luz eléctrica e havia o adormecer obrigatório, no dia seguinte todos
acordávamos cedo para irmos para a Escola e Liceu que ficavam longe de casa. Mesmo
assim às escondidas acendia o candeeiro de petróleo e ia para a casa de banho
ler, pois ficava longe do quarto dos pais….e quantas noites fez isso. Dormia
pouco, mas feliz.
Um dia casou, estava enamorada, mas não apaixonada, nem sabia o que era o
amor. Pensava que o amor se construía. Eu acredito que sim, quando o casal é
cúmplice do mesmo desejo. O facto é que esse casamento não resultou, teve dois
filhos, os seus diamantes.
Muito aturou e sofreu, muitas lágrimas verteu, mas deu a ambos boas
ferramentas para se imporem no mundo do trabalho e sente-se orgulhosa, com o
sucesso dos seus filhos.
Começou a conhecer-se melhor e a questionar-se qual seria o seu papel neste
mundo, e o que pensou de certo modo tem vindo a concretizar-se.
Com esse estar assim se impôs no mundo do trabalho sempre bem sucedida.
Numa das noites de insónia alguém lhe sussurrou, substitui as dores em alegria,
em sorrisos e logo se apressou a mudar de atitude, rapidamente alcançou os seus
objectivos.
Então veio a magia presa a um temporal aterrorizador, as árvores gemiam
fustigadas pelo vento, levantou-se pegou numa caneta e papel e escreveu sobre o
pânico que a assombrava e conseguiu superar o medo que a afrontava e assim o
seu maior sonho começou…
Maria Lúcia Saraiva – 2020-03-27
Direitos de Autor reservados e protegidos nos termos da Lei 50/2004, de 24 de Agosto – Código do Autor
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Autora: Ísis Estevens
A escola primária de Barcarena (Em resultado da quarentena)
7 de Outubro de 1954, um
luminoso dia de Outono. Saímos da minha casa em Leceia, para me estrear na
escola.
Fomos por um «caminho de cabras», a estrada que ligava as duas povoações foi alcatroada nos idos de 1960, e entrámos numa belíssima moradia rosa com uma caravela de azulejos numa das paredes, um amplo edifício de três pisos, situado na hoje chamada Rua 7 de Junho e precisamente no nº. 7.
Subimos ao primeiro andar
e ainda vejo a luz e sinto o cheiro a cera daquela belíssima sala. A grande
Professora que foi a senhora D. Alice de Sousa Moreira recebeu-nos, docemente sorrindo.
Com o número 240, iniciei a minha escolaridade.
A escola era, diariamente,
a minha descoberta. Desde a poesia, à aritmética, à história e à (maldita)
gramática. Sempre o amor daquela senhora, o convívio com meninas de todas as
classes sociais, vindas da Ribeira Acima, Ribeira Abaixo, Valejas, Queluz de
Baixo, Leceia e (naturalmente) Barcarena.
O início dos grandes
convívios, do bulling (por ser a
melhora aluna, passei para a 2ª. classe com vinte valores) e das grandes paixões,
apesar de meninas para um lado (o primeiro andar) e meninos para outro (o
rés-do-chão), com recreios também separados, o nosso numa espécie de cave.
Enriquecia diariamente. Da
janela da minha sala, via uma velhíssima parede, a que chamávamos Poço do Pires,
para aproximadamente 50 anos depois saber, graças ao José Luís Cardoso, que era
ruína da aldeia pré-histórica mais antiga da Península Ibérica, o castro de
Leceia.
Na escola primária de
Barcarena obtive as maiores referencias, más e boas, que guiaram a minha vida pessoal
e profissional.
Boas são a lembrança da senhora
D. Alice, de um casal de professores, ele o Joaquim Pinho (?) e a mulher, uma
regente escolar substituta da minha professora, que se encontrava doente, e já
depois de concluída a 4ª. classe, quando da preparação do exame de admissão ao
ensino secundário, duas belíssimas mulheres. Uma linda jovem, a Srª. D.
Idalinda Tição dos Santos, professora dos meninos, que nos levava para a sua
casa em Queluz de Cima, e a Srª. D. Joaquina, professora das meninas, vinda da
Amadora e também uma grande profissional.
Retomo a inovadora figura do casal Pinho (?), porquanto a família acabou por (des)respeitar as normas docentes. Lembro que o Professor, cerca de um mês depois do início do ano lectivo de 1956-1957, reconhecendo que o meu irmão então com 7 anos acabados de fazer, sabia de mais, passou-o de imediato, para a segunda classe. Depois, por que, segundo as suas conveniências, atendendo às necessidades da família mas desrespeitando as normas vigentes, misturava ambos os sexos na sua aula do rés- do- chão. Também por defender que as meninas deviam continuar os estudos após o ciclo primário e ainda por não fazer distinções de estatuto social. Cumprindo as regras de então, quando era preciso bater, batia (lembro-me das mãos negras do Miguel) – se quiserem tenho o escrito As mãos negras do Miguel – e tratava todos(as) pelo nome.
Lembro que havia um menino
lindíssimo, loiro, de olhos azuis, com uma indumentária que o distinguia dos
outros. Uma bata branca de bom tecido e bom corte e por baixo dela, talvez, outras
roupagens do mesmo nível. Esse menino era o Cordes, o único, tratado pelo
apelido.
Passaram-se anos, muitos,
muitos anos, até que soube quem era o Cordes. Quem era o Cordes? Quem era?
O Cordes, era tão só um
neto do General Sinel de Cordes, dono da Quinta do Cordes, que hoje conhecemos
como Quinta Nossa Senhora da Conceição, importante figura politica com ligações
ao Estado Novo e que, se a memória me
não falha, tinha então em Barcarena uma rua com o seu nome, a hoje chamada Rua Pelner
Duarte, um cidadão barcarenense anti-fascista morto no ano de 1942, em Timor.
Por que fui felicíssima na
Escola Primária de Barcarena, comovo-me sem dificuldade quando a vejo. De entre
as lembranças, evoco a festa do exame da terceira classe das crianças das
localidades apontadas e lembro a riqueza da vida de muitos (as) que por lá
passaram. Há porém uma incógnita que gostaria de resolver…!
Que está por trás daquela
vivenda lindíssima, que foi a Escola Primária de Barcarena? A quem pertenceu, quem
a pensou, por que mantém, pelo menos exteriormente, as características de
sempre e por que foi afecta à educação, desrespeitando o modelo arquitectónico
das escolas primárias de então? Quem me esclarece?
Isís Estevens
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Autor: Jorge Castro
Um dia na vida do Corona Vírus – 17º dia de confinamento – Reflexões avulsas
São oito horas e dez minutos da manhã. Espreguiço-me na cama. Hoje até era capaz de ir dar um passeio pela praia de Carcavelos mas, como não tenho cão, não sei se posso passear com a minha gata. Mas receio que ela não esteja pelos ajustes, tão dada que é ao livre arbítrio. Além disso, na praia nem se deve passear o cão, mas enfim… Com a minha companheira presumo que não posso. Pelo menos, não está anunciado no Estado de Emergência meiguinho que nos calhou em sorte e, se não está, é melhor não tentar essa sorte.
Levanto-me para as rotinas matinais. Dirijo-me ao espelho da casa de banho e reconheço vagamente o tipo que está ali a olhar para mim, a quem cumprimento, com um esgar um pouco despenteado, confesso.
Abro, em rotina, as portadas da
casa toda, confirmando que a minha companheira já se adiantou no pequeno-almoço,
como tem vindo a ser hábito ultimamente, pois fico até tarde repartido entre a
televisão e o computador, só reparando, então, que o dia está bonito. Ficar
acordado até tarde é no que dá: levantar tarde e perder o amanhecer. Assim vai
o desequilíbrio do meu mundo… Ainda por cima, fui informado de que dormir pouco
fragiliza o sistema imunológico.
O confinamento, entretanto, tem
aspectos curiosos: temos tempo para pensar. Desde as mais sublimes altitudes
até à mais comezinha reflexão. Da salvação do mundo até à limpeza do excremento
do cão que um vizinho passeante deixou à minha porta, que a clausura tem as
suas fugas e dádivas inopinadas.
Tomo o pequeno-almoço visitado,
como habitualmente, pela passarada que se habituou a partilhá-lo connosco.
Bastaram umas poucas sementes diárias e restos de pão rotinadamente colocados
num comedouro improvisado para lhes comprar uma confiança relativa, mas muito
aprazível.
Não devemos, no entanto, abusar
deste subsídio, pois interessa que a passarada não se desabitue de colher o
pão-deles-de-cada-dia, não vá dar-se o caso de lhes faltar, inopinadamente, o
fornecedor e eles ficarem sem saber como se amanhar. E este tempo não está para
dados adquiridos nem hábitos de calaceirice. E isto vale para o ser humano como
para o pardal.
Há coisas a fazer, claro. Cortar
a sebe, aparar a relva, retirar ervas daninhas, cortar e armazenar lenha obtida
de móveis velhos, fazer pão, sei lá que mais… O que vou cumprindo, calma e
apaziguadamente. E, outra vez, essas tarefas propiciam a reflexão constante que
antes refiro.
Dou por mim a matutar que, numa
escassa quinzena, já fui informado de que devia usar luvas de protecção e de
que não as devia usar; por outro lado, que devia usar máscara e, logo mais, que
seria melhor não a usar; que a desinfecção dos pavimentos é crucial mas, as
mais das vezes, é um esforço inútil…
Recentemente, colhi até a
informação de que usar barba era contraproducente. Presumo, entretanto, que
esta situação se referirá prioritariamente à população masculina. Mas fico
desconfortável, como é evidente. É que se, amanhã, vierem contradizer este
ditame, vai levar-me uma data de tempo a recompor a pelagem.
Assisti a um frenético
açambarcamento do papel higiénico como se todos padecessem de infernal diarreia
e ao desaparecimento do pão fresco… que vem depois a aparecer, bolorento, nos
caixotes do lixo. Façam açorda, pelo menos, ó alminhas aflitas!
O distanciamento ao meu
semelhante (leia-se este semelhante na perspectiva de ser alguém tão atreito
como eu a captar o malfadado vírus), tem vindo a aumentar. Começou por um
discreto e comedido «distanciamento razoável» para o imperativo de um metro e a
última versão já implica um mínimo de dois metros. Hoje, de manhã, a fila/bicha
para o supermercado, sempre percursor, que frequento já atinge os cento e
cinquenta metros… para uma dúzia mal contada de clientes em espera.
Como o ventinho tem estado
fresco, talvez aconteça que aquela espera propicie, até, uns resfriadozitos
para dar mais sabor à vida. Nada de preocupante, embora, e sempre ficamos com
um entretimento doméstico complementar.
Tenho, entretanto, uma angústia
que me acompanha nestes dias de clausura: por que não ir fazendo testes de
detecção da Covid 19 a toda a população? Não há testes que cheguem? Pois
constou-me que já soluções preconizadas por cientistas portugueses, vejam lá! E
com possibilidade de produção ilimitada.
Mas o que mais me tem marcado é,
sem margem para dúvidas, a incidência da maleita na população sénior, na qual
me vou incluindo, valha a verdade.
Esta malévola discriminação só
pode ter sido congeminada por algum pequeno deus menor e insidioso com
tendência para a Economia, tipo Lagarde e outras abencerragens.. Mas o certo é
que a avassaladora percentagem de óbitos recai, sem margem para dúvidas, nos
escalões etários a partir dos setenta anos.
E isto, então, traz-nos para um
campo em que nem a ironia, nem o sarcasmo, nem o bom humor têm lugar: os
famigerados lares da terceira idade.
Num mundo que se está objectiva e
institucionalmente nas tintas para os anciãos de cada sociedade, a recolha e
resguardo dos cidadãos em fim de vida e, mormente, na chamada velhice desvalida,
vai competindo aos lares. Instituições privadas, quase todos, sujeitos,
portanto, às «regras de mercado», com pessoal de preparação e competências
profissionais mais do que duvidosas em tantos e tantos casos que todos
conhecemos.
Como poderá alguém manifestar
surpresa por serem estes locais os coios onde prolifera a contaminação?
Com um mercado de trabalho
canalha – que também (quase) todos conhecemos – chega um momento, na vida de
cada família, em que os filhos não têm condições para acolher e tratar dos pais,
por mais entes queridos que sejam. E não necessariamente por razões económicas
directas, mas por razões de vida que – outra vez – todos conhecemos e os que
não conhecem, se procurarem um pouco nas respectivas famílias, logo encontram e
com múltiplas facetas.
E isto traz-nos ao remate desta
minha frágil e canhestra crónica:
Que este confinamento a que
estamos obrigados, que fez surgir à luz do dia tantas e tão clamorosas
carências de âmbito social, em todo o mundo, ainda que em certos países mais do
que noutros por consabidas razões, que este confinamento, dizia, nos alerte
para a necessidade de encarar o problema da chamada terceira idade com a
dignidade que ele merece.
Que interiorizemos e obriguemos
os respectivos governos a criar uma rede de cuidados a prestar aos anciãos tão
relevante como o nosso Serviço Nacional de Saúde no tratamento das doenças e na
manutenção da Saúde dos cidadãos.
Esta não é uma matéria que deva
ou possa estar entregue a interesses privados. Malfadada a sociedade em que
vivemos que se deixou resvalar para esta insensibilidade institucional, onde
nem sequer se apura que se está a falar de cidadãos que, na sua esmagadora
maioria, pagaram os seus impostos, taxas e taxinhas, e que, assim, ergueram a
sociedade em que nos movemos.
Se, depois, algum afortunado
quiser pagar do seu bolso uma estadia de rei, que o faça e que recorra a
seguros e a lares principescos e tudo por aí fora. Mas, antes, o cidadão comum,
o velho sem amparo, porventura sem família ou com família sem condições, sem
amigos e que apenas convive com a sua solidão deverá ter o direito à dignidade
que advém da sua própria cidadania.
Estão a ver para o que havia de me
dar o confinamento?
Jorge Castro, em 28 de Março de
2020
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Autor: Fernando Lopes
A Cura
da Cova do Vapor
A minha memória de infância leva-me, nestes dias
de quase auto-reclusão, a recordar um episódio que sempre julguei associado à
designada tosse convulsa, cujo nome científico é pertússis ou coqueluche. Ca raio de designação, que desconhecia até
consultar a Wikipédia. Segundo a descrição, esta é uma doença bacteriana
associada a crianças de tenra idade. Ora eu tenho na memória o que a seguir
descrevo. Tal só pode significar que então já tinha mais alguns anitos.
Ora assim foi, lá por meados dos anos 50 do século
passado. Nascido e criado em Caxias de Oeiras terei sido acometido por algum
problema de saúde que preocupou os meus pais. Como era normal na época, uma
família da classe média baixíssima, para não dizer pobre, tão comum no Portugal
salazarento de então, recorria a conselhos de curiosos que, por vezes, eram
também os tratamentos sugeridos pelos João
Semana de então. Não esqueçamos que a tuberculose ainda grassava e, apesar
da BCG estar a chegar, esta doença
ainda requeria o “confinamento”, palavra tão em voga nos últimos tempos.
É num contexto de práticas de terapias
alternativas, que recordo, com alguma imaginação infantil, a lembrança da minha
primeira “grande” viagem além-Tejo na companhia do meu pai. Ainda eram os tempos
em que a talassoterapia complementava, quando não substituía, a medicina
oficial. Saímos da casa onde vivíamos, situada no bairro do Forte de Caxias, mesmo
ao lado do “sinal”, estrutura acastelada, pintada de branco, integrada no
sistema de sinalização da Barra do Tejo e que fora antes o Mirante, sítio
altaneiro e privilegiado pela realeza quando veraneavam na Quinta Real de
Caxias.
Como dizia, lá fomos. Primeiro a pé, por caminhos
de terra batida, depois pela Marginal, então vazia de trânsito, até à Cruz
Quebrada. Aí, por ser uma alternativa mais económica ao comboio, apanhámos o
carro elétrico. Ronceiro, a tilintar, passou pelo Dafundo, depois Algés e por
fim Belém. Ali para os lados do Palácio da Presidência da República, descemos e
procurámos a Estação Fluvial, obra característica do Estado Novo, que
aproveitou os aterros anteriores que fizeram desaparecer o Real Cais de Belém
Comprados os bilhetes, aguardámos o cacilheiro, que já se avistava, pachorrento
e altivo, com a ré coberta por lona e, obviamente, sem janelas. Entrámos e
procurámos um lugar de que pudesse desfrutar melhor da maresia iodada. Esse
devia ser o remédio tão ansiado para cura da maleita. Desperto o apetite para o
farnel, dele recordo as bananas, fruta então exótica e ausente da dieta da
maioria dos portugueses.
O azul do céu, o ar puro e limpo, o cachão
provocado pelo movimento da hélice e a brisa ligeira que entrava nos pulmões
ainda fragilizados do paciente, acompanharam o nosso percurso até à Cova do Vapor.
Ali chegados, um passadiço de madeira levou-nos até um enorme istmo de areia
que, ao tempo, ainda acompanhava, ao longe, as “ilhas” do Bugio, que diziam ser
ainda acessível na maré baixa.
Como a praia não era o destino, apesar de muito em
voga, pouco nos devemos ter demorado. No regresso, ainda sentados à ré, ou à
proa, talvez para continuar a aproveitar a aragem fresca provocada pela
deslocação do cacilheiro. Como num filme, em que o barco e os meus olhos eram a
câmara estática, observava as imagens que pareciam mover-se, deixando para trás
a povoação de pescadores e, a meio do percurso, o casario e a fortaleza da
Trafaria, em cuja praia se vislumbravam, às avessas, as “chatas” de pesca varadas
no extenso areal.
Já com o Sol no seu zénite, aportámos a Belém e
tomámos o caminho de volta, talvez de comboio ou de carro elétrico, não recordo
bem. Certo é que devo ter ficado curado da maleita. Se foi da viagem e da
maresia, ou porque tinha que ser, nunca saberei.
Fernando Lopes, no Alto do Lagoal, Caxias, aos 12 de Março de 2020.
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Sequenciando o desafio lançado aos associados da Espaço e Memória, estamos a inaugurar este espaço destinado a textos da autoria dos nossos associados com o primeiro contributo que nos chegou através de Henrique Seruca e com o título A Embaixatriz.
A embaixatriz
Um dia recebi, no meu consultório em Lisboa, um paciente especial. Era o filho mais velho do embaixador de um país do próximo oriente, acompanhado apenas pelo pai. O embaixador era um príncipe, de religião muçulmana.
O problema do miúdo era uma malformação genital importante que necessitava uma cirurgia correctiva, com hospitalização de vários dias. Explicada a situação ao pai, sugeri a hospitalização numa clínica privada de Lisboa, onde eu realizava cirurgias.
O príncipe-embaixador anuiu, mas solicitou alguns dias para se organizar. A cirurgia nada tinha de urgente e concordei.
Sua Alteza foi ao hospital acompanhado por um secretário e pediu para falar com o director da clínica e visitar o espaço, de alto a baixo. Pediu que lhe fosse reservado todo um piso, apesar de só ocupar uma grande suite. A suite foi limpa, pintada, equipada com um excelente frigorífico e uma grande televisão, e o chão coberto com tapetes orientais enviados da embaixada. Os tapetes estavam contraindicados num ambiente hospitalar, mas Sua Excelência exigiu a colocação dos tapetes, entre os quais três de oração. Na suite foram instaladas três camas, a do paciente, a da mãe, a embaixatriz, e outra para uma aia. À porta do quarto e à porta do hospital foram colocados seguranças da embaixada, em permanência.
A cirurgia foi realizada, com sucesso, e o pós-operatório na clínica decorreu tranquilamente, ao longo de uma semana.
A embaixatriz era uma senhora jovem, envolta num lindíssimo chador que só deixava ver um bonito rosto, sem que se vislumbrasse um só cabelo. Todos os dias o seu vestuário era diferente, ou de algodão finíssimo, ou de seda. Recebia-me com um ligeiro e gracioso aceno de cabeça, respaldada pela aia, qual cão de guarda, que a seguia como uma sombra. Eu fazia o penso, trocava umas palavras em inglês e só voltava no dia seguinte.
Reparei que todos os dias os tapetes orientais eram diferentes dos da véspera. Curioso, perguntei ao pessoal da clínica o que se passava. Explicaram-me que, todos os dias, um funcionário da embaixada chegava com rolos de tapetes debaixo dos braços, trocava os que estavam na suite pelos novos tapetes e regressava à embaixada com os tapetes da véspera. Um luxo verdadeiramente oriental.
O embaixador e a esposa estavam radiantes com o resultado da cirurgia, pois o filho ficara como se nunca tivesse tido qualquer problema no seu aparelho genital. Quando anunciei que o rapaz tinha alta, a embaixatriz sorriu, muito feliz, e disse-me: “Não vá embora, pois quero oferecer-lhe uma coisa…” E foi à outra divisão da suite buscar algo.
Eu não estava à espera de qualquer presente, mas pensei logo: “Vai oferecer-me um tapete oriental, com certeza. Os príncipes do próximo oriente costumam ser muito generosos…”.
A embaixatriz regressou, de sorriso rasgado, com uma caixa de bombons aberta, nas mãos. “Faça o favor de tirar um…”
– Henrique Seruca – 26 de Março de 2020
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Apesar do confinamento a que estamos obrigados pela COVID 19 e sempre na expectativa de que as condições que a tal nos obrigam cessem o mais brevemente possível, interessa saber que a vida não pára.
É assim que José Fernando Delgado Mendonça decide manter a Maratona de Poesia – Oeiras 2020, agora num formato que se coadune com os imperativos da clausura. E aí está: os participantes previstos para os diversos locais de cultura de Oeiras apresentam-se através de um grupo organizado, para o efeito, através do «facebook». Sem contaminações virais, a não ser as cibernéticas e, mesmo essas, acauteladas…
Nele participam, como já ocorreu em anos anteriores, diversos associados da Espaço e Memória. Poderão vê-los pesquisando nessa plataforma por Maratona de Poesia Oeiras 2020 ou em https://www.facebook.com/groups/2486829264868669/
Entretanto, acautele o dia de hoje para amanhã podermos dar-nos aquele abraço de que já sentimos falta!
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