Hoje tive de sair para ir até ao cimo da rua ao talho do sr. João. Melhor dizendo: a mercearia do sr. João durante a pandemia.
Claro que o que lá fui fazer foi ir buscar o pão alentejano já fatiado fininho. Hoje era mesmo só o pão que eu desejava com fúria canibalesca quando saí de casa. Mas as luvas, a máscara, os sapatos que tenho guardados à porta, os óculos que agora nunca uso em casa mas que não esqueço pôr quando vou à rua nem que seja só para despejar o lixo nos contentores. Moro em Cascais mas todo o lixo da minha rua pertence a Oeiras. E desta vez sem culpa do vírus. O pior foi nos dias em que não se podia passar de um concelho para outro! Em que contentores para o lixo, vidrões, porta óleos e de pilhas, me pareciam sempre exércitos mal-amanhados de furgões sem préstimo para engolirem os detritos das ruas mais próximas. Hoje não fui ao lixo. Não tinha em casa quase nenhum. Ontem saí para desaguá-lo todo nos contentores cinzentos e sem graça. Mas as garrafas de vários tamanhos, panóplias de gostos muito particulares, e os boiões dos pikles que vão acabando, levarei noutro dia. Deixei também as folhas A4, que me submergem já, a aguardar nova oportunidade. Agora o lema é outro: Não fazer tudo no mesmo dia. Adiar coisas para novo dia sempre diferente no igual que comporta. E até o lixo se adequa a que assim seja. Há que fazer render o tempo do isolamento. Só a pandemia, que é totalmente injusta nesta indesejada visita alargada ao mundo inteiro, pode verdadeiramente viajar, não precisando sequer dos aviões que estão parados; de comboios e barcos a circularem; ou de fronteiras terrestres abertas em livre circulação como é o espaço Schengen. Estancando as migrações de seres humanos que, na rota de profecias bíblicas, buscam apenas melhores condições de vida. Varrendo a eito o planeta Terra num frenesim louco e demencial, o vírus ceifa velhos e novos transversalmente, sem olhar a quem. Deixando um rasto de dor e impotência a pairar por sobre os escombros à escala global.
*
Penso no conceito que diz que é preciso uma aldeia para criar uma criança. E olho com apreensão para a reabertura das creches. Como vai ser com as crianças que os pais lá deixarem ficar diariamente? Uma angústia pedagógica para quem os vai receber e desenvolver um trabalho de que verdadeiramente nada podem saber ainda e, na verdade, quais as implicações. Crianças numa idade em que estão a dar os primeiros passos para a aprendizagem da vida, num ambiente que lhes é tão hostil, vão começar no dia 18 de Maio, já na próxima segunda-feira, a regressarem às creches. Sem proximidades (q.b.); sem que possam trazer de casa brinquedos para poderem partilhar; sem contactos físicos com os outros meninos ou quaisquer objectos para a troca. Afinal sem possibilidade de sociabilização, objectivo principal que os leva através dos pais, a estarem ali para benefício de uma aprendizagem de vida a começar agora. Partilhar e sociabilizar com outras crianças, norteiam a necessidade actual, que substitui a aldeia pela tribo infantil, de uma mesma creche, como ponto fulcral para a educação nesta idade. E não esqueçamos que eles serão, em todo o mundo, os homens e mulheres que vão constituir as sociedades. E o mundo será o que eles forem. E com um iniciar tão espartilhado de regras contra-natura e tão pouco desejáveis portanto, como lhes é adverso este novo paradigma, que começa já esta próxima segunda-feira de Maio. A transformar conceitos de actuação, embora com as angústias reais que estão presentes, mas a que eles não podem fugir e de que futuramente serão as primeiras vítimas. Ou o novo paradigma deseja precisamente isto? Uma sociedade robotizada, de seres sem emoções, frios e individualistas, controlados ordeiramente como roupa mandada limpar a seco nas lavandarias a troco de lhes tirarem quaisquer resquícios de nódoas indesejáveis, como sejam pensamentos e, muito menos, acções de partilha ou de interajuda. Seres obedecendo apenas a correias de execução à distância. Pobres crianças com tamanho peso às costas. Pobre mundo que se nos apresenta com este novo paradigma.
Máscaras só as venezianas. Misteriosas. Coloridas. Frivolidades assintomáticas da beleza pela beleza.
Num desafio crescente da loucura feita da inconsciência salpicada pela acqua alta. Com a elegância e o charme desconhecido com que nos cruzam pelos canais ou nos arrastam apetecíveis pelas ruas e vielas de Veneza. Agora também existe o desconhecido. Mas que nada nos oferece de bom. E só nos pode angustiar ao impor um tipo de vida onde o medo leva à impotência, por mais que sejamos pragmáticos, de uma solução adiada num sine die de que não possuímos a data final. As máscaras de recorte requintado, mesmo quando retratam as vilanias dos cortesãos venezianos de uma república que se deixou sucumbir nas vaidades de rainha do Adriático, são as únicas que deixei entrar no meu dia-a-dia. Até agora guarnecem a chaminé da lareira, onde durante os meses mais frios do inverno deixo que o crepitar dos toros de azinho me aqueçam o corpo e a alma. Tenho duas que trouxe de Veneza no verão de 2009. Uma, é uma máscara feminina, de roxos e palhetados dourados com elegantes plumas multicores oscilantes. A outra, a de algum sedutor louro e de olhos azuis, que andasse perdido num esconde-esconde escaldante através da Laguna. Turbilhão sem fim de gôndolas que se cruzam no Grand Canal, com Santa Maria Maior a crescer à direita, frente já aos Leões de S. Marcos. Tudo é misterioso e luxuriante em Veneza. E as máscaras também. Mas a miséria tanto espreita nos abandonados degraus de alguma igreja barroca, como solfeja uma miséria cosmopolita no olhar vítreo que se antevê por detrás da máscara que ostenta uma riqueza afinal só aparente. Mas não é todo o mundo actual constituído por civilizações ostentatórias de um caminhar pelo falso e ilusório? Mais ou menos global, o que estávamos a viver levar-nos-ia inevitavelmente ao abismo. Que a pandemia no seu confinamento forçado, ao menos nos leve a reconhecer que terão de ser feitas mudanças radicais e que o novo paradigma traga maior consciência a cada um. Para podermos avaliar o que o “ficar isolado em casa” por tempo que ainda não sabemos o quanto será para o planeta azul poder refazer-se melhorando a qualidade das suas condições de vida e ser considerado de igual para igual, parceiro das sociedades humanas.
*
E agora tudo está deserto. E a acqua alta, embora não no seu tempo ainda, irá retornar. E poderá crescer alagando as esplanadas que não estarão lá para serem por ela inundadas. Setembro vem longe. Mas chegará. E a dúvida leva-nos à interrogação: “Como vai ser?” Algures a meio, entre o Carnaval e o final do verão, imagina-se tudo o que não sabemos como vai ser. Porque máscaras só as do confinamento. E mais ou menos seguras consoante o material e a maneira como a confecção for feita. Mas o medo estará sempre lá. Ao usá-las ele está presente e eu assumo-o. Mas há que habitar a ideia de que é um novo desafio a cada um de nós. A que temos de responder Presente. Para bem de todos. Para bem de nós. E porque a imaginação pode ajudar-nos a ultrapassar crises, eu volto os olhos para as belas máscaras venezianas que guardo na memória, e como se fosse colocar uma porque tenho de ir à rua, ao supermercado ou à farmácia, digo: “Tudo vai passar”. Só mudou o paradigma!
O meu poema não nasceu ainda… O meu poema esta na voz das mamanas de macala, Que gritam esganiçadas e derretidas de calor, O meu poema está nas palmeiras à beira mar, E no silvo das cobras cuspideiras Que rastejam na terra escarlate… O meu poema, o meu poema… Está no estender das mãos Dos mendigos do cais, Cobertos de feridas e rodeados de moscas… O meu poema, está nos batuques, E nos tambores que transmitem mensagens ao luar… O meu poema, o meu poema… Não nasceu ainda… Está no canto das aves selvagens Cujos nomes são ainda desconhecidos… Esta no pólen das flores tropicais… E anda à roda nas voltas da vida… O meu poema… O meu poema, Está no apitar dos navios que partem… No palpitar dos corações… E no gemer do quissange misterioso e quente do luar africano… Um dia, o meu poema será cinza… O meu poema misturar-se-á com a terra, E dele brotarão as flores mais belas, E andará em todas as bocas… O meu poema nascerá então!
Para princípio de conversa, o
conceito é relativo. Se perguntarem a um miúdo de seis anos, ele considera os
pais de trinta, velhos. Aos nossos vinte, qualquer indivíduo na casa dos
cinquenta nos parecia mais do que entradote… e por aí fora.
Estão estafadas as conversas que
vão buscar a longevidade eternamente juvenil e activíssima de um Fernando Pessa
em contraponto a qualquer molengas jovem mas eminentemente sorna.
Mas, hoje, o tema volta à ribalta, com contornos mais do que dúbios, por força da contaminação do vírus e da «população de risco», referindo-se toda a gente aos velhos, como uma espécie civilizacional à parte.
Velhos que constituem, no
Portugal que temos, cerca de um quarto da população. Sem querer armar em antropólogo,
sociólogo, estatístico ou outro qualquer especialista – que nem sou – vejo,
entretanto, com apreensão a deriva de alguns opinativos que partem do factor
idade para o associarem à inutilidade ou ao «peso» (leia-se fardo) social que
representam.
E, aqui, é que os néscios, os
apressados (que também são néscios), os direitolas jovens (que, por sua vez,
são néscios apressados) e outras camadas pouco higiénicas da nossa sociedade
mostram clamorosamente que as suas caixinhas cranianas, quiçá por terem
desenvolvido demasiada massa óssea, comportam poucos neurónios e, ainda para
mais, mal articulados.
Vejamos:
– para além do imprescindível
contributo dos velhos na sustentação do agregado familiar, nos dias que
vivemos, que incide sobre o apoio, anónimo e clandestino quase, aos netos e aos
filhos, seja directo, seja indirecto… e quantas vezes através da «subsidiação a
fundo perdido»;
– para além do seu contributo
para a sustentação das incontáveis acções culturais, quase anónimas mas sempre
presentes, que atravessam diariamente todo o País e que contam com a
organização e participação maioritária de velhos – que se desunham,
ingloriamente, as mais das vezes, para contarem com a participação de gerações
mais novas nessas iniciativas;
– para além de serem, em
larguíssima maioria, os velhos a darem um passo em frente em tudo quanto seja
voluntariado hospitalar, em particular, mas social, em geral… geralmente a
custo zero, ainda que muito boa gente activa disso beneficie;
– para além de muitas outras
coisas, porventura de somenos, ocorreu-me, nestes tempos propícios à reflexão,
fazer um breve exercício, recorrendo aos dados fornecidos pelo Instituto
Nacional de Estatística, depois de ter ouvido uma personagem ministerial referir
que cerca de metade dos proventos realizados no turismo – que, pelos vistos, já
representa 17% do PIB, o que não é despiciendo – provém do turismo interno.
Dos residentes em Portugal, portanto.
Ora, basta uma levíssima agitação
das meninges, olhando para os dados de 2018 (os gerais mais recentes, que
qualquer um pode consultar) para rapidamente se concluir que esse turismo
interno é constituído, em cerca de um quarto do seu total, pela população
no escalão etário entre os 65 anos e o infinito. Se, entretanto, lhes juntarmos
a população entre os 45 e os 64 anos de idade – onde já se contam muitos
pré-reformados, reformados e pensionistas – atinge-se um valor de 50%.
Por si só, pois, ou em cúmulo com
o acréscimo do grupo anterior, os velhos deste País representam uma parte fundamental
e imprescindível no movimento do turismo nacional e, nesse contexto – já não
referindo os outros contextos –, mantêm-se como uma parte muito significativa da
população «activa» que sustenta a máquina da economia em movimento…
Já para não falar do IRS que o
Estado Português continua a cobrar a reformados e pensionistas, o que sempre me
pareceu uma aberração inqualificável mas, enfim… isso ficará para outra
croniqueta.
Assim sendo, animem-se, pois, os
velhos! Animemo-nos! Estão em nós os saberes antigos e a experiência de uma
vida vivida, mas estamos, também, perseverando na construção dos pilares do
futuro.
Quanto ao mais, já os meus avós
diziam que vozes de burro não chegam aos céus.
Vem a este propósito evocar uma canção popularizada por Vera Lynn, em 1940, que se transformou num hino para as hostes aliadas, We’ll meet again (Voltaremos a encontrar-nos) cuja letra, curiosamente, volta a estar na ordem do dia.
«Voltaremos a encontrar-nos, não sei onde, não sei quando mas sei que nos voltaremos a encontrar num dia ensolarado. Continua a sorrir como sempre o fizeste até que os céus azuis afastem para longe as negras nuvens.(…)»
Nascida em Londres, a 20 de Março de 2017, contando pois com a bonita idade de 103 anos, Vera Lynn mantém-se, ainda, entre nós.
E as notícias ouvem-se; e as notícias vêm-se. E os sítios passam frente aos nossos olhos todos os dias, e as imagens desfolham-se na nossa memória.
Caindo como tordos pelas janelas que vamos rasgando nestes cinquenta e um dias em que um emaranhado dilúvio de informações se converteu numa arca encerrada, atirada ao acaso por um deus desconhecido, que obriga um planeta inteiro a uma acção global perversa, como nunca antes sentida e, muito menos, imaginada.
Je vous parle d’un temps que les moins de vingt ans ne peuvent pas connaître Montmartre en ce temps-là accrochait ses lilas jusque sous nos fenêtres e, se o humilde quarto mobiliado que nos servia de ninho não parecia valer muito foi lá que a gente se conheceu. La bohème, la bohème Ça voulait dire on est heureux La bohème, la bohème.
Mas há dias que custam mais. E há também dias em que deixamos deslizar a memória para fora de nós. E então viajamos como se numa máquina de tempo estivéssemos encaixados. Sozinhos. Sem interlocutor com quem falar senão nós próprios. O silêncio a preencher-nos por inteiro. A carregar o fardo connosco. Ou o silêncio como alter ego único que nos resta?
E eis que Montmartre desce sobre nós na voz quente de Aznavour, com quem curiosamente me cruzei logo a atravessar a porta do aeroporto Le Bourget, na minha primeira chegada a Paris, sozinha, um mês antes do Maio de 68. Foi um bom presságio para a minha estadia.
Aquele cantor arménio pequenino, que nos anos sessenta, simbolizou para largas gerações do mundo ocidental, as minorias de que pouco sabíamos nessa altura. O cantor da voz romântica, mas não só. Marca de toda uma geração gizada pelos ideais de liberdade que vinham da Revolução Francesa, marcantes na Língua e Cultura francófonas.
Em tempos de gerações ainda alheias à corrente anglo-saxónica que os Beatles introduziram na segunda metade do século XX.
La bohème, la bohème. Ça voulait dire on est heureux
Montmartre, onde marquei hotel da última vez que estive em Paris, em 2009, e, tal como da primeira vez também na Páscoa.
Só que dessa vez não havia nas ruas do Quartier Latin pedras arrancadas, nem ouvi palavrões em português de operários que trabalhavam sem poderem saber que ouvidos compatriotas por ali estivessem.
Mas também não me cruzei à chegada, com Aznavour, a atravessarmos ao mesmo tempo, em sentidos opostos, a porta do aeroporto que também não foi o mesmo.
Não voltei a Montmartre porque não voltei a Paris, mas a pandemia trouxe-me as imagens televisivas de uma Montmartre deserta que me levou a estar às voltas com a memória. Nesse dia, o quinquagésimo primeiro do confinamento, La Bohème preencheu-me por completo e a Liberdade voltou a estar inteira na memória. * E agora, nos dias cinzentos do isolamento a que estamos submetidos, resta-nos cultivar a liberdade interior. Para dialogar com ela dentro de nós e a podermos manter.
Só a essa nos podemos agarrar. A liberdade de pensamento, a liberdade de obedecer a este confinamento que nos deixa privados de uma coisa tão simples como a actividade do corpo. Que é bom para uma mente sã e tão necessária é aos que foram nele apanhados mais velhos só porque nasceram há mais anos.
confinadíssimos de pasmo nos mantemos em clausuras que ninguém suspeitaria num amargor de vida que sustemos sem sabermos quando nasce um novo dia
pó seremos – cinza breve – só memória mas enquanto cá vivermos haveremos de cruzar quantos caminhos da história sejam feitos pelos passos que nós dermos
porque o mundo é nosso – de nós todos e o ar que respiramos nossa herança preenchendo os pulmões com ar a rodos peregrinos a caminho da esperança
não é parco este mundo mas finito e todos nós pouco mais que um marinheiro solitário a caminho do infinito mas sabendo ter o Sol por companheiro
e no fim da viagem percorrida acostando ao seu porto de destino ter em si a noção certa e vivida de ter feito da sua vida quase um hino
de fulgores – de incertezas – de amores de ser da lei maior da vida partidário nessa busca permanente de mil cores de um viver perenemente solidário.
A jangada já estava no mar. Em pleno oceano zangado corria certeira nas ondas alteradas. As vagas tão depressa a faziam transportar para o cume dos infernos elevando-a na torre de vigia ao mais alto dos impensáveis como antecipava mais depressa ainda atirá-la para a caverna funda em que o novo movimento de terror feito os aprisionava.
Durante a minha infância houve uma brincadeira recorrente que acontecia principalmente aos sábados de manhã.
Em cima do divã da sala de estar eram derramadas as caixas de brinquedos conjuntos de três irmãos.
E tudo era chamado a participar independente do estado em que se encontrasse: novo, velho ou assim-assim.
Bolas, bonecas, cavalos mancos e respectivos guerreiros com elmos mas sem viseiras salientes confraternizavam com chaveninhas e colheres e garfos já de plástico, lado a lado com tachos e panelas de lata colorida, mas também com automóveis descapotáveis de cores espampanantes, tambores de vários tamanhos, apetecíveis legumes plastificados e até ovos estrelados tão bem imitados que só faltava um pão gostoso para os degustar.
No divã da sala de estar, uma varanda quase quadrada, envidraçada com pequenos rectângulos que deixavam entrar o sol a eito, eu brinquei anos a fio com os meus dois irmãos. O Salvador, mais velho do que eu um ano, e a Marisol, miúda ainda criança ao pé de nós, com caracóis e nariz arrebitado que viera ao mundo para nos infernizar o juízo, ao Salvador e a mim.
A brincadeira organizava-se como se da arca de Noé se tratasse e o dilúvio estivesse prestes a acontecer. Eu simbolizava intuitivamente a acção bíblica do Velho Testamento, que se centrava na necessidade interior que, frente às interrogações que um cataclismo de que nem sequer sabíamos ainda o nome, nos prende, nos reduz a uma insignificância diluída num todo global a que temos de sobreviver.
Os dois irmãos mais velhos compreendiam, ainda que vagamente, porque tinham de voltar recorrentemente a brincar às jangadas. A terceira, Marisol, era muito pequena, e embora não anjo louro de inocência, no miolo de folhos e saiotes encarnados com bolinhas brancas onde emergiam os estranhos caracóis do cabelo cortado curto, essa, era diligente a tomar a brincadeira a sério e tornava-se um bom grumete a cumprir ordens.
Conservar, a bordo da jangada, no sobe e desce descomunal da pandemia desconhecida, era o lema que acolhia os três irmãos ainda que de maneiras diferentes. Talvez por ser rapaz o Salvador preferiria jogar à bola com os amigos rapazes, o que evidentemente tinha de guardar para quando pudesse estar com eles.
A casa era num prédio antigo de uma rua onde passavam já muitos automóveis e até com bastante frequência grandes camionetas verdes de mudanças. E nós não tínhamos quintal. Quanto ao mais próximo só podíamos avistá-lo à distância do terceiro andar onde morávamos, para o rés-do-chão habitado por uma vizinha velhota que vivia sozinha e não falava com ninguém.
E assim era a sala de estar o que nos restava para sobreviver quando os nossos pais ao sábado de manhã ainda estavam a dormir.
No silêncio gastava-se a transumância da turbulência que atirava a jangada como casca de nós que não iria conseguir sobreviver.
O silêncio jogava-se naquele instante enquanto os vagalhões provocados pela tempestade não esperada varriam da jangada os primeiros destroços de cavalos mancos e cabrinhas desvalidas sem que algum dos três irmãos lhes conseguisse valer.
Eram as primeiras vítimas de um desígnio alheio e insondável, frente às interrogações que cresciam variadas nas cabeças dos dois irmãos mais velhos, o Salvador e a Ana Catarina. Era a primeira vaga de uma procela que varria o convés atirando borda fora bonecos e animais, objectos e pessoas indiscriminadamente.
E tudo acabava à hora do almoço para ser recomeçado na próxima brincadeira que pudessem fazer juntos naquele divã, onde a jangada da sobrevivência esperava por eles para novo combate à pandemia.
Ana Catarina e Salvador precisavam de proteger uma força mental que os levava à procura daquela ideia de jangada e à necessidade intuitiva que sentiam ao fazê-lo, somavam-se mais perguntas que ficavam suspensas, sem respostas, mas permanecendo com uma grande inquietude dentro deles.
Interiorizada sem grande consciência, mas com a determinação de quem tem de obedecer a alguma ordem superior desconhecida para enfrentar novos paradigmas.
E fosse o que fosse, mesmo o mais aterrorizador que viesse a acontecer, eles tinham de sobreviver.
No caos e na ordem, cruzadas todas as variáveis quase infinitas. Na angústia como mesmo no pânico, a pandemia iria continuar. Só eles tinham de permanecer na salvaguarda da mente e de uma consciência plena do sentido da vida.
Mas será que vou conseguir levar até ao fim tal propósito? O paradigma tinha mudado. Mas seria que eu vou querer viver assim, sobrevivente de mim mesmo?
Eu sabia que o livre arbítrio me dava o direito e a legitimidade ética para optar. A vida mudara radicalmente depois do 11 de Setembro em 2001. Os valores volatilizaram-se gradualmente. A Natureza transformou-se sem retorno, exigindo com inteira justiça a reparação de tudo quanto a ganância dos homens a violentou.
Para todos o desafio é aterrorizador. Enquanto isso, o instinto mais forte é sobreviver na pandemia.
Mas será que sei e quero viver paredes meias com o medo, neste contexto que vai ser a normalidade daqui para o futuro?
Para os meus amigos, para todos os que estão também confinados. 2020, Ana Maria Patacho, Sassoeiros, 29 de Abril
14-12 2025 - Da nossa associada Ana T. Freitas uma nova iniciativa de um poema na vila:
«O frio está aí e Dezembro, naturalmente. A próxima sessão de poesia de um poema na vila vai acontecer no dia 14de Dezembro de 2025, às 15h, na Galeria do Mercado Municipal de Coruche. O tema é viajar entre versos. Viajemos. Contamos consigo.»
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